segunda-feira, abril 06, 2020

Ameaça da Luftwaffe em Lisboa



Aviões da Luftwaffe voando em desafio nos céus de Lisboa?
Nunca tinha lido tal coisa, mas Artur Agostinho dedica onze páginas ao episódio nas suas memórias, Ficheiros Indiscretos (Oficina do Livro, 2002). Conta o locutor que cumpriu parte do serviço militar obrigatório na Bateria Anti-Aérea de Murfacém, a dois passos da praia da Trafaria, numa unidade comandada por Brito Camacho, filho do velho político republicano homónimo. Foi aqui que presenciou o episódio que narro de seguida.
«Procurarei evocá-lo tão pormenorizadamente quanto a memória mo permitir», começa por advertir. «A verdade é que já lá vão uns bons sessenta anos e – como diria o famoso Hercule Poirot – por melhor que seja o estado em que se encontram as minhas células cinzentas, é perfeitamente natural que haja uma ou outra pequena falha (ou imprecisão) no decorrer do meu relato.»
A guerra de 1939-45 entrou na fase decisiva. Portugal mantém a neutralidade possível, mas está a ser pressionado para autorizar a cedência das bases açorianas à aviação dos Aliados. Se o fizer, o governo de Lisboa corre o risco de incitar o Eixo a considerar a medida como uma quebra da neutralidade, incorrendo numa possível retaliação militar. Se não o fizer, as ilhas podem pura e simplesmente ser invadidas, já que não existe dispositivo de defesa local que possa contrariar esse desígnio.
Titubeante, após meses de negociação, o governo autoriza a utilização das bases de Santa Maria e logo depois do campo de aviação do Faial. E ao mesmo tempo inicia «medidas especiais para a eventualidade de um ataque da aviação germânica, a começar pela instalação de um dispositivo de defesa anti-aérea à volta de Lisboa, precedida de uma campanha de esclarecimento visando a Defesa Civil do Território». Até aqui, não há dissonância entre as memórias de Artur Agostinho e o conhecimento disponível sobre a diplomacia em tempo de guerra. Em 1943, é de facto criado o Comando de Defesa Anti-Aérea de Lisboa. Para quem gosta de curiosidades, o comando adopta como timbre de armas o morcego, conhecido pelo seu fenomenal dispositivo de eco-localização de ameaças.


Aliás, desde o Verão de 1942 que há notícias de exercícios de simulacro de bombardeamento na capital, como o revela uma reportagem do Mundo Gráfico, publicada em 30 de Junho de 1942.


Agostinho descreve a «obrigatoriedade de colar tiras de papel nas vidraças das janelas de todos os edifícios e de proceder à ocultação de luzes de forma a dificultar qualquer acção de bombardeamento por parte de aviões inimigos». À noite, com estranhos paralelismos com a situação actual, Lisboa é uma cidade silenciosa, vazia e escura. Em 1943, teme o inimigo ruidoso que vem pelos céus; em 2020, teme o inimigo silencioso e microscópico.


As baterias anti-aéreas, segundo este relato, estão equipadas com tecnologia inglesa , «aparentemente, em condições de entrar em acção a qualquer momento», diz o futuro locutor da Emissora Nacional. Mas a todas faltava o regulador de espoletas, «sem o qual não era possível abrir fogo com a garantia de um mínimo de eficiência». As espoletas dos projécteis «tinham de ser devidamente reguladas para que o rebentamento se verificasse depois de percorrida a distância a que se encontrava o alvo, mesmo que não ocorresse o impacte do projéctil com o avião inimigo».
Só que o fornecedor inglês dos equipamentos não entregara o instrumento em causa. Ficara «esquecido algures na velha Albion», diz Agostinho, sugerindo que o “erro” teria sido um seguro de vida do governo inglês, não fosse dar-se o caso de, um dia, aquelas baterias anti-aéreas servirem para alvejar a sua própria aviação caso o pêndulo da guerra oscilasse para Berlim. Como resultado, «as probabilidades de acertar no alvo seriam praticamente nulas».


Agostinho não está sozinho em Murfacém, naturalmente. Segundo a revista Stadium n.º 164, de 1946, também o futebolista Quaresma, velha glória do futebol do Belenenses, presta serviço na unidade, com um posto equiparado a sargento.

O EPISÓDIO DESCONHECIDO
A novidade do relato surge a partir do momento em que Artur Agostinho revela o dia em que a unidade foi colocada em regime de prevenção geral, na véspera do anúncio da decisão governamental de cedência das bases. «Chovia a cântaros. Pouco depois do toque de recolher, recebemos uma visita inesperada. Nem mais nem menos do que o então ministro da Guerra, coronel Santos Costa, que chegou na companhia do capitão Cavaleiro, nosso comandante e de mais dois oficiais superiores», relata Agostinho. Há certamente um erro cronológico no relato, pois Santos Costa, em 1943, ainda não é ministro da Guerra, é subsecretário de Estado.
«Àquela hora, uma visita tão importante significava, sem des﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽ de referir «que escolhera aquela hora tardia para a sua visita de forma a evitar especulae o entada em regime de prevúvida, que algo de muito especial estaria para acontecer», diz o narrador. O político quer saber o estado de ânimo das tropas. Algo está prestes a acontecer, embora Santos Costa não deixasse de referir «que escolhera aquela hora tardia para a sua visita de forma a evitar especulações». Entredentes, fala-se do receio de uma provocação alemã que suscite uma resposta militar e, consequentemente, uma declaração de guerra.
«Poucas horas decorridas sobre a visita de Santos Costa, fomos alertados para a presença de dois aviões alemães no espaço aéreo português», diz o locutor. «A chuva tornara-se mais intensa – quase diluviana – quando a guarnição da bateria foi chamada a tomar posições de combate. Todos perceberam rapidamente que não se tratava de um exercício de rotina. Dessa vez, a coisa era mesmo… a sério.»
«Os potentes projectores instalados em Porto Brandão haviam sido accionados e os seus largos feixes de luz eram já bem visíveis, ainda que a intensidade da chuva e o céu muito nublado tornassem difícil a localização de qualquer aeronave.»


O Quartel de Queluz, onde está instalado o Comando, adverte para a necessidade de não abrir fogo. «Poucos segundos depois do alerta, começou a ouvir-se o ruído de motores de aviões. A princípio, longínquo. Depois, mais próximo, mais intenso. Logo a seguir, dois dos projectores de Porto Brandão conseguiram cruzar os seus feixes de luz sobre um deles. (…) Foi possível identificá-los como bombardeiros da Luftwaffe.»
As aeronaves sobrevoam os céus da capital. Mostram-se como um rato que zomba do gato. Serão um isco para incitar um tiro precipitado que permita depois aos alemães alegar que dois aviões perdidos com o temporal, sem intenções bélicas, teriam sido alvejados.
«Após três ou quatro passagens sobre Lisboa, os aviões acabaram por se afastar, sempre acompanhados pelos projectores de Porto Brandão e pelo ‘preditor’ da nossa plataforma de comando, que ia fornecendo os dados necessários a uma acção de combate, incluindo os números que deveriam ser marcados nas espoletas dos projécteis pelos… inexistentes reguladores.»
Encharcados até aos ossos, os membros da unidade percebem que o perigo passou. Decorreram dez ou quinze minutos do mais emocionante exercício de quase combate durante a Segunda Guerra Mundial. «Raros terão sido os lisboetas que se aperceberam de que, naquela noite de tempestade, a Segunda Guerra Mundial havia estado ali bem perto de nós.»
Um dos homens da bateria de Artur Agostinho desabafa: «Apanha um gajo uma molha destas e nem sequer lhe deixam dar um tirinho. Antes o Parque Mayer!…»


2 comentários:

OLima disse...

Mexendo com memórias... A minha mãe nasceu em 1930 em Rabo de Peixe, S. Miguel-Açores. Contava-me que ela e as irmãs, - tinha ela 11 anos -, passaram uma tarde a puxar pela criatividade e a recortar folhas de papel vegetal de várias cores com desenhos extremamente elaborados que depois colaram com goma-arábica aos vidros das janelas para eles não ferirem ninguém em caso de bombardeamento e eventual estilhaçar de janelas (feitas de madeira de criptoméria, a propósito). Santana, a menos de 5 Kms de S. Sebastião, local de residência dos meus avós maternos, albergava uma base aérea improvisada pelos britânicos e era um potencial alvo da aviação alemã…

Gonçalo Pereira disse...

Viva Octávio, boa noite. Belíssima recordação. Tenho ideia de também ter lido, nas memórias da viúva Athayde, alguma informação sobre os preparativos dos micaelenses para os bombardeamentos possíveis. Mas esta sua recordação é muito vívida e interessante. Um abraço