sábado, agosto 25, 2018

O Bairro dos Jornais, de Paulo Martins


Diz-se dos faróis que têm a tremenda capacidade de iluminar a escuridão, lançando um foco de luz em todas as direcções, menos numa –  a dos seus próprios alicerces. De alguma maneira, esse é também o crime acumulado dos trabalhos já produzidos sobre a história do jornalismo português: concentram-se nos constrangimentos e na memória, nos méritos e fraquezas da prática jornalística, mas, até à publicação de O Bairro dos Jornais, poucos tinham ainda colocado o território de implantação dos jornais lisboetas como objecto de análise. Paulo Martins demonstra em 429 páginas que esse caminho estava não só por trilhar, como abria horizontes promissores.
O Bairro Alto, lembra Appio Sottomayor num prefácio caloroso, será porventura o único aglomerado lisboeta que se pode gabar de possuir uma certidão de idade. Sabe-se com precisão que tem 505 anos – nem um a mais, nem um a menos. Por ali passaram escritores e políticos, marialvas e actores, personagens respeitáveis e gente indecorosa. É, de certa forma, uma pequena cidade dentro da cidade, com regras e códigos próprios. Durante cento e oitenta anos, entre a década de 1830 e a actualidade, ergueram-se ali catedrais de papel e tinta, jornais bem sucedidos ou fracassados, sonhos concretizados e pesadelos inesquecíveis.
Fruto de uma recolha rigorosa, Paulo Martins mapeou as ruas do Bairro Alto e do Chiado (concessão geográfica que se percebe dadas as fronteiras difusas entre ambos e também o facto de algumas redacções saltitarem de um para o outro) em busca dos jornais que ali se instalaram. A lista é exaustiva e o trabalho de reconstituição da arqueologia dos jornais de Lisboa é digno dos maiores elogios. Nunca tal levantamento se fizera. A obra de Mário Matos e Lemos (Jornais Diários Portugueses do Século XX, Ariadne, 2006) raspou a superfície e produziu um primeiro censo. Paulo Martins completou agora essa recolha, com uma impressionante base de dados de nascimentos e óbitos periodísticos.
O Bairro dos Jornais é uma história do jornalismo de Lisboa, sem pretensões a assumir a configuração de a história. Caminha rua a rua, tropeçando em fantasmas do passado. Percorre edifícios palacianos convertidos em redacções e tipografias e dialoga com nomes há muito esquecidos. À boleia do livro, quase escutamos os ardinas da Guarda Avançada, o primeiro jornal apregoado e vendido pelas ruas de Lisboa. Capítulo a capítulo, mergulhamos nas tipografias, forjas de reivindicações sociais e verdadeiro coração da era das rotativas. Tão depressa nos emocionamos com o drama dos suicídios dos antigos trabalhadores de O Século e da República, subitamente privados de salários e atirados para a pobreza extrema pelo fecho dos seus títulos, como sorrimos, imaginando Rodrigues Sampaio, batendo-se em duelo de pistola com Santana de Vasconcelos, comendo biscoitos com displicência e disparando a mastigar.
Em O Bairro dos Jornais, há um equilíbrio difícil de manter entre a historiografia clássica e a anedota que aligeira o tom, mas ajuda a transmitir a mensagem. Mais do que num gráfico de barras ou num relatório financeiro, Paulo Martins conta que o verdadeiro sintoma da doença de um jornal emergente era o momento em que os ardinas começavam a chamar-lhe manteiga. Era certo que já ninguém lhe tocava. Que jornais modernos mereceriam hoje tal tratamento?
Numa história com quase dois séculos, consumiram-se sonhos e ousadias de várias gerações de jornalistas. Sucederam-se regimes. Travaram-se pactos de amizade imorredoura e geraram-se inimizades viscerais. Censura e polícia política conviveram nas mesmas ruas das redacções. Paredes escondiam ouvidos indiscretos e forçavam cochichos. E as revoluções, claro, avançaram amiúde pelas portas de entrada dos periódicos, destruindo-os com a força criativa de uma erupção vulcânica. Quantos jornais republicanos e monárquicos destruídos pelas hordas cegas! Quantas balas disparadas à porta de O Século e de O Mundo!
Meticuloso e consultando uma variedade de arquivos que fortalecem os alicerces do trabalho agora publicado, Paulo Martins traz também à liça informações e documentos inéditos ou poucas vezes contados. Revela por exemplo o papel de A Imprensa da Manhã no incitamento da matança de Outubro de 1921, conspirando, corroendo, instigando. No centro da crise que tomará a vida de Machado dos Santos e António Granja, está Esculápio, o jornalista que a posteridade teima em reconhecer apenas pela boémia e gazetilhas. Nas páginas do livro, desvenda-se também que a proclamação do general Gomes da Costa no golpe militar de 1926 teve a impressão digital de um homem dos jornais, Manuel Múrias, que fará depois carreira nos jornais da Situação. É igualmente pela pena de Paulo Martins que se conhece pela primeira vez uma denúncia dirigida ao próprio Oliveira Salazar, informando-o que os novos proprietários do Diário Popular (em 1954/55) resolveram uma disputa entre accionistas de revólver em punho!
Permita o leitor uma última nota impertinente: nesta Lisboa em convulsão turística, repleta de visitantes cativados pelos cheiros e cores da velha capital, não haverá ninguém na Câmara Municipal de Lisboa que utilize a matéria-prima documental agora publicada e crie um roteiro, um verdadeiro roteiro, do que foram os jornais no bairro dos sonhos?


Recensão publicada na revista Jornalismo e Jornalistas, 67, Julho/Setembro 2018, pp 64-65

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