Diz-se dos faróis que têm a tremenda
capacidade de iluminar a escuridão, lançando um foco de luz em todas as
direcções, menos numa – a dos seus
próprios alicerces. De alguma maneira, esse é também o crime acumulado dos trabalhos já produzidos sobre a história do
jornalismo português: concentram-se nos constrangimentos e na memória, nos
méritos e fraquezas da prática jornalística, mas, até à publicação de O Bairro dos Jornais, poucos tinham
ainda colocado o território de implantação dos jornais lisboetas como objecto
de análise. Paulo Martins demonstra em 429 páginas que esse caminho estava não
só por trilhar, como abria horizontes promissores.
O Bairro Alto, lembra Appio Sottomayor
num prefácio caloroso, será porventura o único aglomerado lisboeta que se pode
gabar de possuir uma certidão de idade. Sabe-se com precisão que tem 505 anos –
nem um a mais, nem um a menos. Por ali passaram escritores e políticos,
marialvas e actores, personagens respeitáveis e gente indecorosa. É, de certa
forma, uma pequena cidade dentro da cidade, com regras e códigos próprios.
Durante cento e oitenta anos, entre a década de 1830 e a actualidade,
ergueram-se ali catedrais de papel e tinta, jornais bem sucedidos ou
fracassados, sonhos concretizados e pesadelos inesquecíveis.
Fruto de uma recolha rigorosa, Paulo
Martins mapeou as ruas do Bairro Alto e do Chiado (concessão geográfica que se
percebe dadas as fronteiras difusas entre ambos e também o facto de algumas
redacções saltitarem de um para o outro) em busca dos jornais que ali se
instalaram. A lista é exaustiva e o trabalho de reconstituição da arqueologia
dos jornais de Lisboa é digno dos maiores elogios. Nunca tal levantamento se
fizera. A obra de Mário Matos e Lemos (Jornais
Diários Portugueses do Século XX, Ariadne, 2006) raspou a superfície e
produziu um primeiro censo. Paulo Martins completou agora essa recolha, com uma
impressionante base de dados de nascimentos e óbitos periodísticos.
O Bairro
dos Jornais é uma história do jornalismo de Lisboa, sem pretensões a
assumir a configuração de a história. Caminha
rua a rua, tropeçando em fantasmas do passado. Percorre edifícios palacianos
convertidos em redacções e tipografias e dialoga com nomes há muito esquecidos.
À boleia do livro, quase escutamos os ardinas da Guarda Avançada, o primeiro jornal apregoado e vendido pelas ruas
de Lisboa. Capítulo a capítulo, mergulhamos nas tipografias, forjas de
reivindicações sociais e verdadeiro coração da era das rotativas. Tão depressa
nos emocionamos com o drama dos suicídios dos antigos trabalhadores de O Século e da República, subitamente privados de salários e atirados para a
pobreza extrema pelo fecho dos seus títulos, como sorrimos, imaginando
Rodrigues Sampaio, batendo-se em duelo de pistola com Santana de Vasconcelos,
comendo biscoitos com displicência e disparando a mastigar.
Em O
Bairro dos Jornais, há um equilíbrio difícil de manter entre a
historiografia clássica e a anedota que aligeira o tom, mas ajuda a transmitir
a mensagem. Mais do que num gráfico de barras ou num relatório financeiro,
Paulo Martins conta que o verdadeiro sintoma da doença de um jornal emergente
era o momento em que os ardinas começavam a chamar-lhe manteiga. Era certo que já ninguém lhe tocava. Que jornais modernos
mereceriam hoje tal tratamento?
Numa história com quase dois séculos,
consumiram-se sonhos e ousadias de várias gerações de jornalistas. Sucederam-se
regimes. Travaram-se pactos de amizade imorredoura e geraram-se inimizades
viscerais. Censura e polícia política conviveram nas mesmas ruas das redacções.
Paredes escondiam ouvidos indiscretos e forçavam cochichos. E as revoluções,
claro, avançaram amiúde pelas portas de entrada dos periódicos, destruindo-os
com a força criativa de uma erupção vulcânica. Quantos jornais republicanos e
monárquicos destruídos pelas hordas cegas! Quantas balas disparadas à porta de O Século e de O Mundo!
Meticuloso e consultando uma variedade de
arquivos que fortalecem os alicerces do trabalho agora publicado, Paulo Martins
traz também à liça informações e documentos inéditos ou poucas vezes contados.
Revela por exemplo o papel de A Imprensa
da Manhã no incitamento da matança de Outubro de 1921, conspirando, corroendo, instigando. No centro
da crise que tomará a vida de Machado dos Santos e António Granja, está
Esculápio, o jornalista que a posteridade teima em reconhecer apenas pela
boémia e gazetilhas. Nas páginas do livro, desvenda-se também que a proclamação
do general Gomes da Costa no golpe militar de 1926 teve a impressão digital de
um homem dos jornais, Manuel Múrias, que fará depois carreira nos jornais da
Situação. É igualmente pela pena de Paulo Martins que se conhece pela primeira
vez uma denúncia dirigida ao próprio Oliveira Salazar, informando-o que os
novos proprietários do Diário Popular
(em 1954/55) resolveram uma disputa entre accionistas de revólver em punho!
Permita o leitor uma última nota
impertinente: nesta Lisboa em convulsão turística, repleta de visitantes
cativados pelos cheiros e cores da velha capital, não haverá ninguém na Câmara
Municipal de Lisboa que utilize a matéria-prima documental agora publicada e
crie um roteiro, um verdadeiro roteiro, do que foram os jornais no bairro dos
sonhos?
Recensão
publicada na revista Jornalismo e
Jornalistas, 67, Julho/Setembro 2018, pp 64-65
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