Jorge Lacão avisa no prefácio que a obra lê-se como um thriller. Não sei que thrillers Lacão tem lido, mas é um comentário totalmente
absurdo e desajustado das 518 páginas que se seguem. Apesar dessa entrada em
cena à Charlot, com um tropeção logo de rompante, esta obra de Wilton Fonseca e
Mário de Carvalho, Heróis anónimos, Jornalismo de Agência, História
da ANOP e da NP (1975-1986), possui
reconhecidos motivos de interesse.
Comecemos a recensão pelo mais óbvio: nunca tal fora feito; nunca ninguém
metera literalmente a mão nos arquivos das agências noticiosas do início do
processo democrático, procurando deles extrair lições e tendências. Ao longo de
páginas e páginas de um corpo de texto irritantemente pequeno, acumulam-se
ordens de serviço, actas de reuniões, processos disciplinares, boletins
estatísticos (maioritariamente da ANOP). Essa recolha fica agora feita – ou,
pelo menos, iniciada. O terreno foi, pela primeira vez, aterrado e limpo para
que se possa agora analisar cientificamente a informação, para lá do ruído e da
desinformação. Esse é o mérito principal.
O objecto do livro é a explicação do processo de génese da ANOP, que
deveria ter sido uma cooperativa, transferindo «a propriedade e a direcção
editorial da agência do Estado para os seus utilizadores primeiros, os media»
(pg. 34). Não o foi. A ANOP nasceu estatizada, com tudo o que isso implicou. «A
cada mudança de governo correspondia um período de instabilidade
administrativa, com as esperadas alterações na administração (…) Para ter um
Conselho de Redacção que não lhes fosse hostil, as sucessivas administrações,
por propostas dos directores de informação ou por sugestão do poder político,
admitiam mais jornalistas, o que fez com que, ao fim de alguns anos, a agência
atingisse um quadro de funcionários incompatível com a dimensão dos media do
país», escreve-se na página 79. A assimilação de quadros da Lusitânia e da ANI,
antepassadas da ANOP, foi outro fardo pesado.
As pressões governamentais sobre o rumo da informação são sumariamente
empurradas para os I e II Governos Provisórios, através de um testemunho de
1980 de José Manuel Barroso, um dos directores de informação da ANOP (pg. 139),
que recorda casos em que chegaram a ser enviadas à agência entrevistas
completas, com perguntas e respostas, para difusão. No resto da obra, Fonseca e
Carvalho não se debruçam particularmente sobre as ingerências governamentais
sobre a informação. Preferem, ao invés, concentrar esforços na luta pela
sobrevivência financeira da ANOP, constantemente asfixiada. Apesar de não
existir índice remissivo na obra (e que falta me fez!), atrevo-me a prever que
o nome do secretário de Estado José Alfaia, principal adversário da ANOP
durante o governo Balsemão, será o nome mais focado ao longo de todo o livro…
Vamos ao reverso da medalha. Tal como seria desaconselhável que um
cirurgião realizasse uma operação sobre si próprio ou que um advogado
defendesse o seu próprio caso, é desadequado e pouco sério que uma investigação
que se apresenta como “História da ANOP e da NP” (não “uma história”, mas
“história”) seja levada a cabo por um agente social com responsabilidade
directa nas escolhas (felizes e infelizes) do percurso. Não se pode olhar para
uma casa simultaneamente do interior e do exterior, e a tentativa de o fazer
com um pé na ombreira da porta é arriscada.
Não tenho dúvidas de que Wilton Fonseca é uma das pessoas que mais sabe
em Portugal sobre estes onze anos das duas agências. Em qualquer esforço
histórico e académico, teria sempre de ser uma fonte importante de documentos e
memórias sobre este tema. Porém, noutro papel – o do historiador –, as
roupas parecem demasiado apertadas, sobretudo quando é chamado a comentar
episódios em que participou como director-adjunto de informação. Soam
mal passagens como esta: «Havia uma larga faixa de utilizadores e observadores
que encaravam a obra da dupla Barroso-Fonseca à frente da agência como
positiva.» (pg. 198) Até pode ser verdade, mas fica mal.
Dou outros dois exemplos.
A propósito da queda do avião que transportava Sá Carneiro em 1980, Wilton escreve: «O maior problema da Direcção de Informação não foi
controlar a produção dos jornalistas, mas sim o administrador Santos Cruz que
insistia que a ANOP deveria noticiar que o PM tinha sido vítima de um atentado
bombista. Interrogado pelo próprio director-adjunto de informação, sobre a
fonte que a agência deveria citar na notícia, respondeu: ‘Eu.’» (pg. 151) Vêm à
memória as conferências de imprensa do célebre futebolista que falava de si na
terceira pessoa…
Noutra ocasião, a administração nomeia Cartaxo e Trindade para
director-adjunto de informação, cargo que passa a ser bicéfalo (pg. 216). A
nomeação de um dos homens que mais pugnara pela tradução e publicação do Livro
Verde de Kadhafi foi certamente uma escolha
exótica e injusta. Mas soam mal as críticas pessoais que Wilton Fonseca lhe
move, lembrando que se apresentava como «licenciado em Filologia Românica (que
não era) e como assistente da professora Andrée Crabbé Rocha, o que também não
era verdade».
Ao longo da obra, o autor principal [e chamo-lhe autor principal porque o
seu nome figura em corpo maior na capa] é, em simultâneo, actor participante e
observador imparcial. Como o ministro Jim Hacker (da série Yes, Minister) certo dia descobriu, podem usar-se dois chapéus,
mas continuamos a ter só uma cabeça!
A obra hesita entre dois pêndulos. Por um lado, assume-se como um livro
branco das agências, listando nomeações, cargos, actas, decretos – é a
abordagem mais árida, quase penosa de ler, mas onde se misturam os tais chapéus
do autor principal; noutras passagens, muda a agulha para os episódios
rocambolescos, dramáticos ou acidentais, típicos da vida de qualquer
organização noticiosa. É neste último terreno que a obra merece maior crédito,
recuperando episódios como a nomeação flagrante do irmão de um director-geral
para um cargo na agência (pg.47), a existência (real ou fictícia) de antenas das FP-25 na própria ANOP (pg. 131-133), as pequenas
vitórias de fotojornalismo em Camarate ou em Alcafache (pg. 123), o dia em que
a ANOP bateu a própria Comissão Nacional de Eleições, apurando primeiro os
resultados eleitorais (pg. 73), o nome infeliz da cooperativa que daria origem
à NP e os trocadilhos entre PorPress e PornoPress que rapidamente brotaram (pg.
233), o erro amador do Conselho Geral da ANOP que, ao enviar cartas de
despedimento a alguns trabalhadores, evocou o decreto-lei errado, gastando
tempo e dinheiro (pg. 276), o caso do telex falso (pg. 430) ou a gaffe
da visita de César Torres ao Fórum Picoas
para ver as instalações inexistentes da nova LUSA (pg. 500).
Há um último aspecto que me incomodou, embora reconhecendo que é uma opção que cabe ao próprio autor. Haveria mesmo necessidade de contar os pormenores
sórdidos do processo movido a Adriano de Carvalho em 1980 (pg. 155)? Ou do
despedimento de Paulo David (pg. 165-166)? Ou de atirar Luís Pinheiro de
Almeida para a linha do comboio com tanto requinte no caso do telex falso (pg.
345-348)? Ou de ridicularizar os primeiros dois telexes produzidos pela NP (pg.
299)? Ou de associar a morte de Cristina Ramos Braga à luta pela sobrevivência
das agências? (pg. 357). Não creio…
Os autores chamaram ao livro Heróis anónimos. Percebo o anonimato, próprio da vida nas agências,
mas não subscrevo o heroísmo que lhe está subjacente, nem concordo com a
afirmação da introdução (pg. 15), segundo a qual «elas [a ANOP e a NP]
constituíram a mais interessante experiência de jornalismo vivida em Portugal
no século XX». Não foram.
O Diário Popular (fundado em plena
Segunda Guerra Mundial), O Diário Ilustrado (criado e esmagado pela repressão), o
Expresso (semanário de referência que tinha
tudo para correr mal), a criação de serviços de informação na Emissora Nacional
e na Rádio Renascença (contra todas as vontades), a aventura da TSF (pirata,
primeiro, e rádio do regime depois) ou a eclosão de estações privadas de
televisão poderiam transportar essa mesma coroa. Que, mesmo assim, também não
seria heróica...
Wilton Fonseca e Mário de Carvalho. Heróis anónimos, Jornalismo de Agência, História da ANOP
e da NP (1975-1986). Lisboa, Perfil
Criativo Edições: 2016
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