Tive um chefe de redacção, no início da década de 1990, que se queixava –
já então – da «liofilização das redacções», da produção em série de jornalistas
com as mesmas valências, a mesma formação, o mesmo apetite por tópicos,
estilos, títulos ou géneros jornalísticos. A formação padronizada de repórteres
poderá ter vantagens da mesma maneira que a liofilização protege os alimentos e
degrada-os com mais lentidão, mas o velho Galvão acreditava que, com ela,
perdia-se o sabor da diferença. Goste-se ou não das redacções e do jornalismo
das décadas de 1970 e 1980, mas ali juntavam-se indivíduos para todos os gostos
e feitios, de todas as proveniências e backgrounds,
tipógrafos e revisores convertidos, advogados e sociólogos recauchutados,
escritores frustrados e publicistas desorientados, bêbados em remissão e
meninos de coro – gente com vícios,
claro, mas inegavelmente com mais diversidade. Fui-me lembrando disto enquanto
lia, em dois dias, Um Repórter
Inconveniente (Chiado, 2015), livro de memórias de Aurélio Cunha,
jornalista do Diário do Norte, do Jornal de Notícias (JN) e do Expresso.
Aurélio Cunha fez jornalismo de investigação durante três décadas e meia,
entre 1970 e 2003. Para mim (as opiniões valem o que valem), foi o melhor do
seu tempo e custa a crer que não ainda não seja amplamente reconhecido como o
jornalista que mais produziu neste domínio, abrindo um trilho desconhecido para
os restantes, testando métodos e impondo critérios.
Desde a semana passada que, muito justamente, têm chovido elogios ao
filme de Hollywood sobre a investigação dos repórteres do Boston Globe e os casos de pedofilia na hierarquia eclesiástica da
cidade norte-americana. O livro de Aurélio Cunha serve de contraponto a esse
debate e evoca uma narrativa à nossa escala, muito mais próxima do anti-herói
do que da visão romântica do muckracker
– a do jornalista de investigação isolado na redacção «qual excrescência»,
desvalorizado pelas chefias que o consideram um luxo («a puta mais cara do JN»,
foi um dos mimos que ouviu por gastar tempo a investigar quando poderia dar
resposta às necessidades da agenda diária), forçado a investigar no tempo
livre, a gastar dinheiro do seu bolso ou a forjar baixas psiquiátricas para responder
à disponibilidade das fontes.
Costa Carvalho (outro gigante) refere no prefácio que, face ao «império dos
sentados» em que a agenda e a rotinização do serviço jornalístico dominam,
Aurélio Cunha privilegiou o «império dos sentidos», o
faro, o olfacto de uma história potencial, que valeria a pena escavar. «Foi uma
fera, um predador, não podia viver em cativeiro, era totalmente avesso ao
jornalista-agenda.»
Intriga-me que Aurélio Cunha tivesse aguentado trinta anos nesta
trincheira, pressionado a entregar trabalho cedo de mais ou a subjugar-se à
ditadura do serviço. Só há uma explicação: apresentou mais “furos” do que
qualquer outro, derrubou obstáculos a eito (sem escolher alvos, se me faço
entender) e construiu histórias como caixas-fortes inexpugnáveis (apenas dois
processos judiciais em toda a carreira, um dos quais efectivamente julgado e do
qual resultou a absolvição do réu).
Um Repórter Inconveniente é um espelho de três décadas de
investigação em temas maioritariamente relacionados com serviços públicos do
Porto e não quero acreditar que o carácter nortenho da saga constitua um dos
motivos para a desvalorização do percurso deste jornalista. Uma boa história
não tem origem geográfica. E o livro é, acima de tudo, um manual de boas
práticas do primeiro jornalista que conheço segurado pelo seu próprio jornal,
depois de ameaçado de morte em 1996.
Ao serviço do JN, Aurélio Cunha fez um pouco de todo. Destaco duas
proezas: fingiu ser sacristão para entrar em Custóias no Natal de 1973 e passou
o óbito a si próprio em 1987 no Hospital de São João, dando como nome do
defunto Astromar Salta e José Luís R. Santeiro como nome do médico,
meta-referências a Roque Santeiro,
telenovela de sucesso na época.
Das crianças que chegavam embriagadas à escola aos roubos na facturação
telefónica dos TLP, da violação de menores em Custóias à comprovação
laboratorial da má qualidade das águas do Porto, do escândalo de órgãos
roubados a cadáveres no Hospital de São João à confirmação de erros grosseiros
no serviço de maternidade do Hospital de Aveiro-Norte, este é um roteiro
possível para interpretar o país. Não é bonito, não é um primor literário, mas
é real.
Um Repórter Inconveniente, Aurélio Cunha, Lisboa, Chiado, 2015
(15€)
1 comentário:
Era eu leitor do JN nos anos oitenta/noventa do século passado e ficaram-me gravadas as reportagens do jornalista Aurélio Cunha, que não conhecia.
Frequento há meia dúzia de anos um espaço onde acabei por conhecer um também praticante das lides do ginásio. Perguntei-lhe o nome e a minha estupefacção, era o tal Aurélio Cunha que tinha no meu subconsciente. Ficamos amigos e recordamos esse tempo do jornalismo de investigação.
Fiquei agradado por ver referenciado neste blogue o empenho de Aurélio Cunha.
António Gonçalves
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