quinta-feira, janeiro 08, 2015

E o agricultor continua a lavrar...

"Paisagem com a Queda de Ícaro"
Museu Real de Belas-Artes da Bélgica


Ontem, foram quase tão populares as mensagens de empatia com o “Charlie Hebdomaire” como as mensagens de repulsa pelas correntes electrónicas de solidariedade fácil. Daqui a uma semana, o trigo estará separado do joio e só os verdadeiros fãs do “Charlie” (e de Wolinsky, e de Charb) lamentarão o golpe rude na qualidade e (esperemos que não) na sobrevivência da revista.
Há um provérbio flamengo para estas ocasiões: “E o agricultor continua a lavrar…”, simbolizando a vida em constante progressão e o distanciamento egoísta face aos dramas dos outros. Lembrei-me do óleo “A Queda de Ícaro” atribuído a Bruegel [pode não ser dele, mas isso são outros quinhentos]. É um dos mais extraordinários quadros do século XVI, sobretudo porque representa o acto através da quase ausência.
Ícaro foi queimado pelo Sol e destruído pela sua ânsia de voar cada vez mais alto, mas não está no quadro. Ou melhor: está. No canto inferior direito, junto da embarcação, estão as suas pernas. O resto do corpo já está submerso. Como um fotógrafo distraído, Bruegel escolheu representar os segundos que se seguiram à queda e não propriamente o contacto das asas de cera com o calor do Sol.
E o que fazem os seres humanos nesta representação? Um, em terceiro plano, procura em vão lançar um anzol que possa “pescar” o infeliz aprendiz de deus; em segundo plano, um pastor mira os céus, sem se aperceber de que Ícaro já tombou; e em primeiro plano, um agricultor ignora olimpicamente o drama e continua a lavrar.
E o leitor: que papel escolhe?

3 comentários:

Portugalredecouvertes disse...

gostei

acabei de pensar no ditado

"os cães ladram e a caravana passa!
um bom dia para si
Angela

Anónimo disse...

ADENDA

Já te "encaixei" nos meus BLOGUES MAIS FIXES!

Gonçalo Pereira disse...

Caríssimo Henrique,
Considero esta adenda uma medalha de honra e um grande motivo orgulho.
Forte abraço.