Um amigo morre. Morte estúpida, como todas; antes do tempo, asseguram os indicadores de saúde e esperança de vida. Mas morre.
A morte é tão ritualizada como a vida. O campo médico dispõe de um conjunto de procedimentos de rotinização. Instrumentos e exames asseguram que tudo foi feito (quando foi) para evitar o óbito. Procedimentos burocráticos estimam a hora da ocorrência. Exames complementares sugerem a causa primordial. O campo médico pode então baixar a guarda e passar a batata quente, agora resfriada, para outros.
Da Medicina, o corpo pode transitar para o campo jurídico, se disso houver necessidade, no qual múltiplos procedimentos tornam igualmente burocrática a gestão da morte. Mas normalmente o Direito fica à porta. A Medicina, que tomara temporariamente posse do corpo, devolve-o ao Estado, que assegura, com outros rituais, o sepultamento ou a pulverização em condições rotinizadas. Estamos longe, já, do tempo das valas comuns e do enterramento a monte.
Após dois ou três dias de agonia controlada, de velórios burocráticos, de horários regulados pelas funerárias, a família finalmente sepulta o morto. Prepara-se para avançar.
Mas estamos na era da Internet, na qual a nossa presença está fragmentada em mil bocados. E o defunto persiste. Em endereços electrónicos. Na página de Facebook. Na conta de Twitter. No blogue do Sapo. No perfil de Linkedin. Mil instâncias lembram continuamente que, em tempos, aqueles uns e zeros correspondiam a uma pessoa de carne e osso.
Para a ciência, a morte de um ser humano começou por ser definida pelo momento em que cessava o batimento cardíaco e a actividade respiratória, até ao dia em que o coração de um doente sueco parou de bater, a equipa médica colocou-lhe um transplante cardíaco e o coração recomeçou a bater. Pelos critérios científicos, mas sobretudo legais na Suécia, ele esteve morto e voltou.* Mudaram-se os critérios, claro.
Agora, a morte define-se pelo fim da actividade eléctrica no cérebro, embora um EEG possa detectar impulsos eléctricos onde já não era suposto persistirem. Bem depois disso, porém, persistem impulsos electrónicos. É possível receber, como eu hoje recebi, um convite electrónico para continuar a seguir a conta de Twitter de alguém que já não vai twittar. São fagulhas electrónicas, resquícios efémeros de vida. Talvez um dia tenhamos de renovar os critérios e considerar que um indivíduo está extinto quando todos os seus impulsos electrónicos cessarem.
* A formidável história do doente sueco que recebeu o transplante não acaba aqui. O homem estava condenado por evasão fiscal, mas, de acordo com a lei do seu país, considerava-se oficialmente morto um indivíduo cujo coração parasse de bater. Como isso sucedeu, o Fisco sueco retirou todas as acusações contra ele. Na enfermaria, recuperando da aventura, conta-se que o doente transplantado brincou: "Não é totalmente verdadeiro o adágio que assegura que só a morte e os impostos são certos."
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