Quando somos
crianças (ou quando um político está na oposição, o que, vendo bem as coisas, é
quase o mesmo), tudo parece mais fácil. As soluções são pretas ou brancas, sem
meios termos, compromissos ou tons intermédios. Há bons e maus, heróis e
inimigos, certo e errado.
A conservação da
natureza é um desses campos. Numa sala de conferências, parece evidente que não
pode haver futuro sustentável se a actividade humana colidir com a vida
selvagem, pelo que os decisores assumem a responsabilidade de, em situação de
choque, compensar populações humanas afectadas por consequências indesejadas,
mas inevitáveis, provocadas pelo instinto animal. É essa a ideia, por exemplo,
do velho programa de indemnização dos proprietários de cabeças de gado abatidas
por lobos: desde 1990, instituiu-se que um proprietário de gado ovino, bovino
ou caprino deve denunciar ataques que os seus rebanhos venham a sofrer por
parte de alcateias, sendo por isso indemnizado em função das suas perdas. A
medida visa desencorajar os actos justiceiros dos lesados que, durante tempos
imemoriais, faziam justiça por suas mãos e abatiam lobos em resposta a estes
ataques.
Como tudo em
Portugal, também a lei mostrou debilidades. Para uma população estimada em 300
animais nas nossas fronteiras, o ICNF (enquanto divulgou publicamente dados)
dava conta de uma média de 2.700 ataques reportados por ano. Por outras
palavras, ou os proprietários abusavam da lei e viam nela uma oportunidade de
obter indemnizações ou, para além dos lobos, também os cães assilvestrados
faziam danos consideráveis e, nesse caso, entende o legislador que não cabe ao
Estado compensar o pastor. Um projecto recente de distribuição de cães de gado
a mais de 800 pastores em Montesinho contribuiu para diminuir o número de
pedidos de indemnização (e, espera-se, de ataques), mas o pagamento das verbas
compensatórias foi sempre lento e controverso.
O tema voltou à
agenda com a recente notícia dos ataques de alcateias (ou não) a rebanhos na
zona de São Pedro do Sul.
A peça da SIC Notícias (disponível por enquanto neste endereço) é um esforço pobre de transferência do assunto da esfera
local, onde ele causa natural consternação, para a esfera pública e nacional,
onde ele deve ser ponderado, sem cedências ao populismo e ao discurso dominante
sobre o legislador que tudo erra.
Para que nos
entendamos: não fica claro pela notícia se os ataques são efectivamente
produzidos por lobos; não fica claro se os proprietários se queixam, ou não, às
autoridades; não fica claro se os “lobos” deixam, ou não, carcaças dos animais
que abatem. Mais: é indecente a apreciação sem contraditório ao esforço de
repovoamento de lobos na zona da serra de São Macário. Em nenhum momento, o
repórter sentiu necessidade de escutar um biólogo ou outro especialista em vida
selvagem, que pudesse fornecer uma interpretação alternativa ao acontecimento.
Ouviu apenas os proprietários e o presidente da câmara municipal, que fez uso
do velho silogismo político tornado célebre por Jim Hacker, o ministro fantoche
de “Yes, Minister”: é a vontade do povo, eu sou o seu líder, logo, eu devo...
segui-lo!
Todavia, não
escreveria estas linhas se não tivesse visto os últimos segundos da peça
noticiosa. Ali se apresenta o “Mata-Lobos” e se escuta, com um certo encanto, a
história de batidas aos lobos do passado, quando se podia resolver o problema
sem esse aborrecimento que é o estatuto de espécie protegida, que só serve para
“nos deixar de pés e mãos atadas”.
Peço a atenção
do leitor para alguns recortes que coleccionei ao longo dos anos. Foram
extraídos da imprensa portuguesa dos últimos cento e dez anos. Documentam, sem
exagero, os mesmos sentimentos de barbárie, de despeito pelo atrevimento do
lobo que caça rebanhos, de justiça por conta própria, enraizados na cultura
portuguesa. Casos como o de São Pedro de Sul dão conta de que, riscando a
superfície, a camada de civilização esbate-se. E estão lá os mesmos sentimentos
de sempre.
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Revista Brasil-Portugal, n.º 70, 1902 (reprodução a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
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Ilustração Portuguesa, n.º 149, 1908 (reprodução a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
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"Diário de Lisboa", Março de 1963 (reprodução a partir de arquivo da Fundação Mário Soares) |
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Diário de Lisboa", Março de 1963 (reprodução a partir de arquivo da Fundação Mário Soares) |