(Washington, 10 de Junho - Crónica final) Um processo judicial iniciado em 2003 está agora em vias de resolução, e o seu desfecho afigura-se relevante para o público português. Refiro-me à investigação que incidiu sobre as alegadas irregularidades da actividade de uma conhecida ONG: a Nature Conservancy. O processo que a seguir resumo não deve ser entendido como um sinal de reprovação extensível a casos portugueses ou norte-americanos. Mas é forçoso que não tomemos como certa a independência e autonomia de cada agente social (como aliás nos demonstra a recente vocação política de Sá Fernandes).
A comissão financeira do Senado americano apurou, segundo a imprensa (ainda não foram publicadas as conclusões oficiais) que a Nature Conservancy (NC) abusou da isenção fiscal a que tinha direito, uma vez que as ONG norte-americanas estão dispensadas de pagamento de imposto desde que que não ultrapassem determinado limite orçamental. Segundo a acusação, os bens da NC terão aumentado exponencialmente, superando quatro mil milhões de dólares em 2004, volume esse que obrigaria legalmente a associação a abdicar das regalias fiscais. Convenhamos que com tal actividade financeira o conceito de organizção sem fins lucrativos se tornava difuso.
Ao mesmo tempo, a associação alegadamente utilizou bens e serviços adquiridos em regime de doação, para realizar negócios privados com alguns dos seus administradores.
Reportagens do "Washington Post" de 2003 acusaram a associação de ter ainda beneficiado empresas com cadastro em processos de poluição, de ter permitido negócios madeireiros e petrolíferos em terrenos por si administrados e classificados como áreas protegidas; e, por fim, o jornal acusou ainda a associação de ter comprado terrenos beneficiando dos mecanismos legais favoráveis à permuta do uso de propriedade (de agrícola para ecológica), vendendo-os posteriormente a administradores da própria NC ou a empresas por eles controladas.
A investigação já produziu resultados palpáveis, ao desencadear a acção do senado e ao provocar a demissão em bloco dos quadros administrativos da NC. Nas próximas semanas, saber-se-á a que sanções concretas estará a organização sujeita.
Entretanto, a administração Bush apressou-se a revelar a necessidade de clarificar as relações por vezes nebulosas entre ONG, os seus bens e os seus benfeitores. Aguarda-se um pacote legal mais restritivo para a acção deste tipo de movimentos sociais.
Não creio que o processo pudesse ter semelhantes contornos em Portugal, e a experiência que colhi, junto de uma ONG que tratei num projecto académico, mostrou total abertura de contas e processos. Mas reafirmo que devemos olhar com natural preocupação para o processo da Nature Conservancy. Em primeiro lugar, porque creio que a gestão financeira de bens sai claramente da alçada tradicional de uma ONG; por outro lado, casos como este morrem muito depois da mera aplicação de medidas legais e têm repercussões duradouras. Quem volta a confiar nuam ONG depois de ter sido moralmente ludibriado? Como num sismo, a onda de choque demorará a fazer-se sentir.
3 comentários:
Genericamente concordo com o que foi escrito: um escândalo numa ONG diminui a credibilidade de todas estas organizações, e essa diminuição de credibilidade resulta directamente numa menor eficácia de actuação.
Dito isto, não posso concordar com a tese do autor sobre a gestão financeira dos bens sair claramente da alçada de uma ONG.
Se por um lado temos lutado para que estas organizações tenham cada vez maior poder de lobby e capacidade de actuação, temos igualmente de acreditar que elas são capazes de gerir os seus próprios recursos financeiros. Caso contrário, quem deveria fazê-lo? O Estado?
Parece-me óbvio que uma parte fundamental do desenvolvimento daas ONG passa exactamente por dotá-las das capacidades de gestão operacional e financeira para que elas possam crescer e ser muito mais eficazes.
E já agora, para quando um esforço concertado por parte destas ONG para recrutarem quadros superiores recém-reformados que, estando ainda perfeitamente capazes de continuar a carreira, sentem que precisam de um objectivo um pouco mais nobre do que o simples lucro?
Esta tendência é cada vez mais evidente em países como os EUA ou alguns dos nossos vizinhos europeus e representa um enorme recurso de talento que está a ser desperdiçado em Portugal.
RR
Lisboa
Caro leitor,
Argumento, pelo contrário, que uma ONG deve ser auto-suficiente no plano financeiro, porque essa autonomia seguramente terá reflexos na independência política.
Mas, ao apresentar o caso da Nature Conservancy, parece-me claro que a ONG ultrapassara a sua vocação: uma ONG não deve criar riqueza, nem gerir património. A gestão de bens financeiros ou patrimoniais excede as suas competências, sempre que esse bens não sejam aplicados directamente no fim social a que essa ONG se dedica.
Se quiser simplificar em excesso, seguramente que as ONG beneficiarão de uma gestão profissionalizada e moderna. Mas o caso da Nature Conservancy mostra eloquentemente que há sempre um risco inerente à gestão financeira de um projecto sem fins lucrativos: o que se faz com o lucro (e que lucro, neste exemplo americano!) produzido por uma organização não governamental sem fins lucrativos?
Creio que temos de concordar em discordar.
A autonomia e a independência das ONG são para ambos aspectos muito importantes, mas a forma como estas poderão ser alcançadas é já um ponto de divergência entre nós.
Caso as ONG não desenvolvam princípios de gestão de património e de criação de riqueza, não estarão a alcançar todo o seu potencial. O objectivo destas organizações não é nem será o lucro, mas este é um meio para aumentar os fundos disponíveis, a reinvestir na TOTALIDADE nas activades dessa mesma organização.
A definição de uma organização sem fins lucrativos não é que esta não procurará maximizar os seus recursos. Só e apenas não utilizará esses lucros para remunerar os investidores.
Obviamente que o exemplo actual da Nature Conservancy parece ir no sentido oposto das minhas palavras, mas é minha opinião que apenas sublinha a necessidade destas organizações prestarem contas (e serem auditadas pelas mesmas) aos seus financiadores com o mesmo rigor que qualquer outra empresa.
No fundo, o objectivo será sempre maximizar o impacto que estas organizações possam ter. Apenas discordamos na forma de o alcançar...
RR
Lisboa
Enviar um comentário