quinta-feira, setembro 23, 2021

Ensaio sobre um arqueólogo apaixonado pelo que fazia


 

    Por José de Encarnação, soube agora que faleceu o arqueólogo Manuel Maia e, com ele, vai também uma época especial da arqueologia portuguesa – não discuto se pior ou melhor, se mais ou menos empenhada, se mais ou menos politizada. Esse debate pertence à esfera dos especialistas e dos praticantes da disciplina. 

     Direi apenas que me entendi com Manuel Maia por sinais de fumo. Tinha um faro de perdigueiro, um jeito natural para as descobertas retumbantes. Bem sei que a arqueologia se faz mais de regularidades do que de excepções, mas o casal Manuel & Maria Maia foi, à sua conta, responsável por algumas das mais notáveis descobertas dos últimos trinta anos no Sul de Portugal. E isso, tenham a paciência, terá de constar em qualquer obituário escrito sobre Manuel Maia. 

     Os detractores (porque os também os tinha) revoltavam-se com a sorte. Em vários pontos do país, ouvi gente a barafustar com a facilidade com que, à primeira cavadela, os Maias encontravam um filão. Foi assim por exemplo com o signário de Espanca, a pedra de Roseta da escrita do Sudoeste – o único exemplar conhecido de uma estela onde um mestre escreveu o abecedário dessa escrita invulgar e um aprendiz tentou replicar os signos. A peça da Idade do Bronze deverá ter estado colada a uma parede com barro e caiu durante as escavações de 1996. A seus pés. “Sorte é estar lá e perceber a importância do que se encontra”, disse-me em 2005 ou 2006. Bem à sua maneira, ouvi-o esbracejar mais tarde: “Evito este termo de escrita do Sudoeste que por aí anda. Prefiro escrita turdetana.” 



     Em 1994, durante uma escavação em Santa Bárbara dos Padrões, um dos estudantes envolvido numa escavação de emergência (a autarquia entrara de bulldozzer no terreno contíguo a um velho cemitério) entrou na vala e saiu de lá com meia lucerna. “Nesse dia, trouxemos cinco sacos de supermercado repletos de fragmentos.” A escavação que seria de poucos dias transformou-se numa campanha de quatro meses. Apareceu uma vala cheia de lucernas, um depósito do mundo romano. Cinco, cem, mil... “Terão sido dispostas em cestos, como as chávenas numa máquina de lavar moderna”, explicou, com a habitual paciência do divulgador de ciência que também era. Com o tempo, apareceram 20 mil lucernas, a maior colecção do mundo, naquilo que terá sido um importante santuário do mundo romano. “E há mais para escavar, Gonçalo” – disse-me em Fevereiro de 2018. “Há mais...” 



     Tinha curiosidade genuína sobre os assuntos que estudava. Sabia também as suas limitações. Nunca hesitou em chamar peritos de outros campos, como o géografo que o ajudou a extrair sentido do Itinerário de Antonino Pio, ou a química que lhe pediu para colher amostras das lucernas para tentar perceber que substâncias se queimariam na Antiguidade (veio a descobrir-se que, além do azeite, também a cera de abelha e a resina serviriam). 

     Perdeu-se por vezes em polémicas e não esquecia as afrontas. Nunca escondeu por que não foi aceite para doutoramento nem as causas que (achava ele) tinham estado subjacentes à decisão universitária. Batia-se pelo princípio de que concederia o ponto se lhe provassem que não tinha razão. Morreu convencido de que Castro Verde fora Aramis, dos aramitanos, citados por Plínio. Adorava mostrar as Larnakés encontradas no sítio de Neves I como prova da influência evidente das culturas do Mediterrâneo Oriental na Península Ibérica. Propunha a tese da proliferação dos castelos no Sul do país como marca da presença romana não exclusivamente militar. Com dois elementos, fazia conjecturas e explorava hipóteses. Essa predisposição para a imaginação valeu-lhe alguma sátira. Nunca se ralou. Era um franco-atirador e os francos-atiradores também falham tiros.



     A morte da esposa foi um golpe rude. Houve um ano em que não consegui sequer contactá-lo. Recompôs-se. Pôs-se de pé e fez, no Museu da Lucerna, um pequeno altar com as recordações da carreira da mulher. 

    Fascinava-me sobretudo pela memória. Foi com ele que debati o fascínio dos pides pela arqueologia no Alentejo e as figuras controversas de Manuel Heleno, Farinha dos Santos e Caetano Beirão, que ainda fora seu mestre. “Gonçalo, parece que ainda o estou a ver nas viagens de carro, quando se irritava”, contou-me. “’Vocês não percebem nada do meu bom e amado Führer.’ Era a frase que Caetano usava – provavelmente mais para nos irritar do que sentida.” Mas, ideologias à parte, também reconhecia que a questão da escrita do Sudoeste ficara a dever muitíssimo às recolhas exaustivas de Caetano Beirão. 

     Terei saudades de Manuel Maia, um arqueólogo apaixonado pelo que fazia, um excelente divulgador de ciência e um tipo divertídissimo.
(as fotografias são do António Cunha, outro amigo de Manuel Maia, a quem peço desculpa pelo abuso)

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