domingo, agosto 13, 2017

A filha do fundador do Diário de Notícias


Pela mão do António José Massano, velho amigo e sumo pontífice da revisão literária, chegou-me este livrinho de Manuela Gonzaga que me passara despercebido. Foi editado em 2009 pela Bertrand e corresponde à investigação da autora sobre um caso que agitou a sociedade portuguesa entre 1918 e 1921 – a fuga de casa de Maria Adelaide Coelho da Cunha, filha de Eduardo Coelho e afilhada do Conde de São Marçal, fundadores do Diário de Notícias.
A história de fundo é relativamente conhecida. Num dia de Novembro de 1918, Maria Adelaide saiu do Palácio de São Vicente, na Graça, apanhou um comboio e desapareceu da vida do marido e do filho. O marido era Alfredo da Cunha, director e co-proprietário (com a mulher) do DN. Demorou pouco a saber-se no palácio residencial que a senhora fugira com Manuel Claro, motorista despedido pouco antes, numa ruptura violenta dos costumes da época.
A investigação de Manuela Gonzaga procura o rasto de Maria Adelaide desde a sua fuga para Santa Comba Dão à perseguição movida pelo marido, que a mandou prender sob acusação de demência. Durante oito meses, com uma fuga pelo meio, Maria Adelaide esteve internada no Hospital Conde Ferreira, no Porto, destino infeliz para alienados e sãos sem que qualquer sentença judicial fosse emitida em muitos casos. No caso de Maria Adelaide, bastou apenas o testemunho – comprado – de três eminências judiciais da época, Júlio de Matos, Egas Moniz e Sobral Cid.
Doida Não e Não! é um livro delicioso sobre a percepção da doença mental em Portugal e a facilidade com que as senhoras de boas famílias poderiam ser internadas sempre que existisse consenso na família sobre a natureza da sua loucura, muitas vezes traduzida apenas em amores implausíveis.
Gonzaga dispôs de acesso sem precedentes ao arquivo epistolar do Palácio de São Vicente e, com esse espólio, reconstruiu toda a argumentação judicial de Alfredo da Cunha e a campanha que este moveria a favor da sua causa nos meios disponíveis na época.
Na década de 1990, foi argumentado por Teresa Rebelo que a acusação de demência foi formulada sob um pano de fundo mais vasto, no qual Alfredo da Cunha tentava vender (e conseguiu) o jornal da família da mulher à Companhia de Moagem, apesar da oposição de Maria Adelaide. Rebelo argumentou igualmente que o jornal era desde 1904 um caldeirão de fervores revolucionários, que preocupava Alfredo da Cunha, o director que – sem favores – salvara o jornal da ruína após a morte de Eduardo Coelho. Sobre esses temas, o livro de Manuela Gonzaga adianta pouco, embora sirva para rebater claramente o livro tonto que Agustina Bessa Luís publicou em 2005, romanceando o caso, inventando homossexualidades à medida das conveniências. Mas é pela reconstituição completa de eventos, personalidades e actos que este livro dever ser julgado.
Por motivos óbvios, interessaram-me sobremaneira as passagens sobre a ajuda que os jornalistas Acúrcio Pereira e Augusto de Castro no «novo DN» prestaram ao anterior proprietário, ajudando a condicionar a opinião pública em seu favor. E, como qualquer outro leitor, fiquei abismado quando li que Maria Adelaide só obteve o levantamento da interdição que pendia sobre si em 1944, já após a morte do ex-marido e por especial consentimento do filho. Era então septuagenária e vivera quase quarenta anos com o motorista que um dia a ajudou a fugir do Palácio de São Vicente.
Haverá sempre questões por responder nesta história escandalosa – por que motivo A Capital, que se disponibilizou em 1920 para publicar as cartas da esposa foragida, subitamente interrompeu o apoio à sua causa? Estariam mesmo Júlio de Matos, Sobral Cid e Egas Moniz convencidos de que a menopausa provoca com frequência a demência nas senhoras ou foram simplesmente pagos pelo poderoso Alfredo da Cunha? E mais interessante ainda: quando esteve detida no Conde Ferreira, Maria Adelaide encontrou forma de comunicar com Manuel Claro através de anúncios encriptados de O Primeiro de Janeiro, tal como Álvaro Cunhal fará em 1949. Aparecerão um dia as provas dessa correspondência?


Gonzaga, Manuela. Maria Adelaide Coelho da Cunha: Doida Não e Não! Lisboa, Bertrand: 2009.

2 comentários:

Francisco Seixas da Costa disse...

Uma bela lembrança: o livro e o António José Massano, um velho (salvo seja!) e querido amigo.

Gonçalo Pereira disse...

:-) À sua maneira, o livro e o António Massano são raridades, espécimes difíceis de encontrar.
Trabalhei com ele pela primeira vez há 21 anos (credo!) e mantenho a estima e a consideração dos primeiros dias.
Creio que não conheço outra pessoa que saiba tanto (e goste tanto) da língua portuguesa como ele!
Mas tem o defeitozito do benfica....
Abraço