A equipa que fazia "O Século" em 1973, num mural do caricaturista Baltazar. Galvão Correia está na lombada, ao centro, com óculos de massa. Entre camaradas. Como ele gostaria. |
Morreu o Galvão. Não há ninguém a quem eu
mais deva profissionalmente. A Universidade Nova de Lisboa ficou
com o crédito da minha formação jornalística, mas, na verdade, foi na tarimba,
na “trincheira” como ele gostosamente definia o trabalho de redacção, que me
formei.
Aprendi regras empíricas que ele próprio
colhera na escola de jornalismo que foi “O Século”. Ainda hoje, dou por mim a
escolher, entre duas fotografias que representem o público de um espectáculo ou
uma conferência, a que tem mais gente. “Mais pessoas vão comprar o jornal
amanhã”, dizia ele, num testemunho vibrante sobre o que os jornais significam
para cada leitor. E se ele amava os jornais!
Teimámos algumas vezes (as legendas levam sempre
ponto de final, chefe! Aliás, pus um no título deste texto só para chatear)! Concordámos muitas mais. Admirava o talento dos
grandes repórteres, talvez porque essa não era a sua especialidade. Galvão
Correia era o mais extraordinário organizador do caos com quem eu já trabalhei.
A hora do fecho aproximava-se, gritavam-se ordens contraditórias, as paredes
tremiam, mas a sua mesa era um oásis de planeamento. Com ele aprendi também a
guardar peças no “frigorífico”, materiais intemporais prontos a serem
publicados caso alguma coisa falhe.
Era um jornalista da velha guarda, sem meias-palavras nem rodriguinhos. Quando a ocasião o justificava, rugia como uma fera. Uma das primeiras lições que com ele aprendi foi a perseverança. Ninguém chegava à mesa do Galvão sem o serviço concluído. Simplesmente, não era uma opção. É algo que as faculdades nunca entenderão, nem conseguirão explicar. Em jornalismo, não se falha um serviço. Não ficam páginas em branco por culpa do azar. Duas ou três descomposturas do Galvão vacinavam qualquer repórter.
Gostava de reportagem. Foi com ele que
nasceu a série que venho fazendo no blogue sobre grandes episódios do
jornalismo português. Num almoço há dois ou três anos, pediu-nos (aos que
estavam à mesa) os nomes dos melhores repórteres portugueses. Surgiram os nomes
de sempre: Adelino Gomes. José Manuel Barata-Feyo. José Pedro Castanheira.
Baptista-Bastos. Indignou-se. Ninguém referiu Urbano Carrasco. Definiu-o como
um dos melhores do século XX, apesar de Carrasco se posicionar no pólo oposto
ao dele. Na política, nas amizades e até no “Popular”, velho rival de “O
Século”. Mas, na hora de reconhecer talento, o grande leão era justo. Da
pesquisa subsequente sobre quem foi Urbano Carrasco e o que ele escreveu,
nasceu esta história. E as seguintes.
Admirava a crónica desportiva. Dizia aliás
que o desporto era o último bastião do cronista, mesmo se a televisão matou
parte do encanto da descrição verbal de um jogo de futebol. Vibrava com o
adjectivo e a metáfora em letra de imprensa, a analogia poderosa construída na
máquina de escrever ao domingo capaz de permanecer no imaginário do adepto
durante toda a semana. Defendia os jornalistas do desporto face às críticas
externas dos outros, “os nabos que provavelmente nunca escreveram uma crónica”.
Tinha e tem razão.
Trabalhou sempre por paixão. Em “O Século”,
de onde saiu com mágoa, como toda a gente que ali trabalhou e sentiu o fim de
um jornal que “não tinha de acabar”. Entrou de cabeça em “O Diário”. No
“Sporting”. Na “Gazeta dos Desportos”. Na revista “Mundial”. Dava gargalhadas
contagiantes. Contava histórias antigas. Sobre o dia em que Matateu lhe disse
que, se não há dinheiro não há palhaços e portanto não jogava mais; ou sobre o
dia em que a redacção de “O Século”, farta de tanto snobismo de José Mensurado,
lhe palmou a máquina de escrever
que ele trouxera de Londres e que gabava mais do que um filho. “Ainda a tenho”,
rematava essa história com uma gargalhada sonora e uma palmada vigorosa nas
omoplatas, daquelas que desconjuntavam o esqueleto.
Envolveu-se na política, como creio que
todos os que viveram nos jornais entre 1974 e 1976 fizeram. Não poderia ser de
outra maneira. Contagiou-me. Ensinou-me. Atribuiu-me funções editoriais aos 21
anos. “Tu aguentas, puto!” Não me deixou interromper o curso universitário,
pouco mais do que inútil, e atirava-mo muitas vezes à cara, sobretudo quando
lhe contei que o mestrado também já estava concluído. E o doutoramento. Palmada
vigorosa na omoplata. “Eu não te disse?”
Morreu o meu amigo Galvão Correia, um
homem dos jornais! Com quem vou agora conversar?
4 comentários:
:-((((
Gonçalamigo
Conheci o Victor; era um gajo bué da fixe (como dizem os meus netos...). Mas, não sabia que tinha morrido. Fiquei triste.
Abç
Não estava à espera disto.
Daqui a horas estou num funeral perto de Tomar. A fazer tempo para a camioneta das 7 da manhã, ando a navegar na Net.
E vim dar com a morte do Galvão Correia, 6 dias antes da morte do meu pai.
Um grande abraço de pêsames para os familiares.
Com o Galvão partilhei muita coisa e vivi desde o início essa aventura que foi a "Mundial". Já antes, nos tempos de "O Diário", o nosso contacto era estreito.
Fico com muitas memórias.
Grande Luís, um abraço para ti. Aceita os meus pêsames pela morte do teu pai.
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