O
erro jornalístico tem, por norma, um defeito adicional por comparação com os
erros de outras categorias profissionais. Segundo um velho aforismo bem
conhecido nas redacções, o médico enterra os seus erros e o advogado
enforca-os, mas o jornalista publica-os na primeira página, visíveis para toda
a população, expostos para sempre.
Vem
isto a propósito de mais um aniversário que amanhã (dia 17) se cumpre sobre um
dos mais terríveis erros da imprensa ocidental, pelo menos no que à comunicação
de risco diz respeito.
A
17 de Novembro de 1989, o “The Sun”, jornal britânico do império Murdock,
dedicou ampla cobertura ao tema da SIDA. Na sua página 2, o jornal
escrevia: “Sexo Heterossexual Não lhe Pode Causar Sida”. A conclusão,
terrivelmente errada mesmo para os padrões de conhecimento da epidemia à época,
baseava-se na leitura enviesada de um estudo encomendado pelo Ministério
Britânico da Saúde, que apurara que, entre 2.372 indivíduos infectados com o
vírus, apenas 1 não pertencia aos principais grupos de risco –
toxicodependentes e homossexuais.
Em
face desta anomalia estatística (uma taxa de 0,04%), contrariada por todos os
estudos da época e posteriormente desmentida por todos os envolvidos, o jornal
entendeu escrever em editorial associado ao tratamento noticioso do tema: “SIDA.
OS FACTOS, NÃO A FICÇÃO. A verdade pode, por fim, ser contada. A SIDA, a doença
assassina, só pode ser contraída por homossexuais, bissexuais, drogados ou
qualquer pessoa que tenha recebido uma transfusão sanguínea. ESQUEÇA os avisos
televisivos. ESQUEÇA as campanhas institucionais. ESQUEÇA os intermináveis e
infinitos documentários televisivos e ESQUEÇA a ideia de que os heterossexuais
comuns podem ser infectados pela Sida. Não podem… O risco de infecção por SIDA,
se for heterossexual, é ‘estatisticamente invisível’. Por outras palavras,
impossível. Por fim, sabemos – tudo o resto é apenas propaganda homossexual. E
deve ser tratado de acordo com isso.”
A
abordagem jornalística mereceu contestação desde o primeiro dia. O próprio político
que sugerira o menor grau da ameaça (Lord Kilbracken) solicitou a correcção da
informação, até porque o estudo em causa ignorara todos os relatórios sobre
infecção por VIH, concentrando-se apenas na SIDA. Condenado pela entidade
reguladora dos media na Grã-Bretanha, o jornal publicou por fim um desmentido.
Mas alojou-o na página 28, contrariado, procurando escapar ao aforismo que
define a profissão.
Por
constrangimentos organizacionais, por quebras na cadeia de confirmação da
informação ou por má fé, os media publicam regularmente informação incorrecta.
Faz parte do jogo. Neste caso, porém, o jornal estabeleceu um precedente
(quase) inédito: publicou informação incorrecta, de má fé, colocando ao mesmo
tempo em risco a vida dos seus leitores.
17 de Novembro de 1989 deve por isso ser lembrado. Todos os anos.
Cf. também: Correia, João Carlos (2006), "O Relato Jornalístico e a Doença: Entre a Ciência e a Vida Quotidiana", disponível aqui.
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