Parte 1 de 2
Parte 2 de 2
Através deste documentário de John Pilger, exibido em 1974 na televisão do Reino Unido (e legendado por mim com a imperícia própria dos amadores), torna-se palpável uma dramática modificação no tom, enquadramento e abordagem da informação televisiva sobre saúde, em curso nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha desde o final da década de 1960.
A PERDA DA INOCÊNCIA DA MEDICINA
Aproximada abusivamente das ciências exactas, a medicina tornou-se criticável, como de resto outras estruturas da vida pública, como o governo, as forças armadas ou a escola. Os actos dos seus agentes são expostos e sujeitos ao escrutínio público, as suas motivações e independência questionadas, e a sua prática – até então limitada apenas pela auto-regulação – extravasa dos limites e torna-se politizada. Os temas da medicina nas notícias são, a partir de agora, expressos numa lógica política, que dá voz a agentes partidários favoráveis ou desfavoráveis a cada alteração proposta, ao mesmo tempo que outras esferas de intervenção, como o poder judicial, a incluem na sua área de intervenção.
Pilger demonstra neste documentário sobre os efeitos adversos da ingestão de talidomida por grávidas que as infra-estruturas dedicadas à preservação da saúde pública não são infalíveis, nem incorruptíveis. Com isso, materializa, de certa forma, uma perda da inocência da medicina aos olhos da sociedade.
AS CONSEQUÊNCIAS DE LONGO PRAZO
Na medicina, como na indústria, as consequências de cada acto não são imediatamente palpáveis. A dificuldade de apreensão desta limitação será porventura a maior lacuna da ficção televisiva dedicada aos temas médicos. As soluções não estão sempre ao virar da esquina, nem a total consequência de uma causa é visível ao fim de alguns minutos de hospitalização.
Foram necessários vários anos até o establishment médico-científico comprovar que a ingestão de comprimidos de talidomida por grávidas nos primeiros meses de gestão tinha forte probabilidade de provocar deformações nos recém-nascidos. Ao empirismo emocionado dos primeiros relatos (e imediata negação por parte dos fabricantes), seguiu-se uma maratona de testes laboratoriais até a dimensão completa da tragédia ser testada e validada. É importante recordarmos o caso da talidomida no Reino Unido quando debatemos as consequências de média ou longa duração do acto médico. Sobretudo porque o desfecho de casos como este decorre já em pleno silêncio jornalístico, numa altura em que os órgãos de comunicação social migraram para outros temas da agenda.
A ABORDAGEM DO CONSUMIDOR
Anne Karpf (1988), na sua obra de referência sobre a evolução do discurso sobre medicina e saúde nos meios de comunicação, esforçou-se por definir os anos 1970 como período de transição entre dois tipos de discurso. A abordagem médica foi dominante até então (e é argumentável que permanece em vigor na actualidade), traduzida num discurso centrado nos avanços da medicina, na adaptação de tecnologia à prática médica, no reconhecimento da especialização dos profissionais e na sua caracterização como interlocutores únicos para discutir os problemas da saúde pública. Ora, a essa abordagem dominante impôs-se um segundo registo discursivo: a abordagem do consumidor.
A informação televisiva produzida sob esse paradigma dirige-se, não ao paciente, mas sim ao utente de cuidados de saúde. Informa-o sobre os melhores e os piores serviços, dá-lhe informação (a expressão inglesa "empower" é particularmente feliz). Refuta a autoridade absoluta do médico, contrapondo que ninguém entende melhor o seu corpo do que o próprio indivíduo. É neste registo que o documentário de Pilger se insere, explicando ao público os erros do establishment, confirmando a negligência hospitalar, sublinhando o desinteresse ou mesmo ostracismo a que os doentes e os seus familiares foram votados quando procuravam informar-se.
A relação médico-paciente é assim reestruturada nesta abordagem, através de um discurso emancipatório que recusa o estatuto de "vacas sagradas" conferido pela sociedade aos seus profissionais mais especializados e atribui ao utente/consumidor o direito de conhecer todos os actos ou medidas que afectem a sua saúde.
O AUTOR
À medida que vamos avançando na vida, vamos diminuindo o nosso número de heróis. John Pilger é um dos meus. Relatou vários conflitos armados e tem uma visão do mundo com a qual concordo em grande medida. Jornalista independente, com um currículo inatacável e uma prática de reportagem sem compromissos, que lhe motiva ataques frequentes na Austrália, no Reino Unido e nos Estados Unidos, Pilger fica muito ligado, na realidade lusófona, ao seu envolvimento no processo de Timor.
O seu documentário de 1993 "Death of Nation: The Timor Conspiracy" não é suficientemente reconhecido em Portugal, mas foi um importante rastilho para informar a opinião pública britânica sobre a opressão indonésia sobre Timor e a passividade australiana face à ocupação. Em Portugal, colocamos ênfase (talvez excessivo) sobre o peso das notícias sobre o massacre de Santa Cruz no reconhecimento internacional da luta timorense. Creio, com sinceridade, que nada teria sido igual sem este trabalho de John Pilger.
Ficha técnica
"Talidomida, os 98 Que Esquecemos".
Por John Pilger, 1974, Reino Unido.
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