Depois de ter passado umas horas a ouvir histórias escabrosas sobre restauros defeituosos de algumas das nossas mais icónicas obras de arte, dei por mim a recordar mentalmente um texto de Susan Sontag que me marcou. Reencontrei-o por sugestão do Museu Geológico de Portugal. Trata-se de "O Amante do Vulcão" (1992) e da memória do acto de vandalismo de 1845 que teve como alvo o vaso Portland, do século I d.C.
Aqui o deixo, com uma vénia ao professor Miguel Ramalho e a Ricardo Leal Gomes, e com dúvidas profundas sobre a "originalidade" dos objectos que nos são dados a ver nas salas de museu:
"A meio de uma tarde de Fevereiro de 1845, um rapaz de dezanove anos entrou no Museu Britânico, dirigiu-se directamente à sala sem vigilância onde se encontrava uma vitrina de vidro com o vaso Portland, uma das riquezas mais valiosas e célebres do museu desde que, em 1810, o quarto duque de Portland aí o deixara por empréstimo. Pegou num objecto mais tarde descrito como "uma curiosidade escultórica" e desatou a bater no vaso desalmadamente. O vaso rompeu-se, quebrou-se, estilhaçou-se, ficou espatifado. O rapaz pôs-se a assobiar baixinho e sentou-se em frente do monte de cacos a admirar a sua obra. Os guardas acorreram precipitadamente. (…)
Isto é um crime que não se comete mais do que uma vez. Esta forma de obsessão por um objecto, a obsessão de o destruir é monogâmica. Sabemos que o Sr. *** não voltará ao Museu Britânico para dar uma paulada na Pedra de Roseta ou nos mármores Elgin – nem é provável que qualquer outro o faça, pois, ao que parece, não há mais do que dez ou quinze obras de arte em todo o mundo susceptíveis de criar tais obsessões (segundo uma estimativa recente, provavelmente por defeito, do superintendente das Belas-Artes de Florença, cidade que tem a honra de albergar duas delas, a estátua de Miguel Ângelo e o Nascimento de Vénus, de Botticelli). O vaso Portland não consta da lista.
Ninguém pode reparar o Sr. ***, que foi condenado pelo juiz a pagar uma multa de três libras ou a dois meses de trabalhos forçados. Não tendo mais que nove pence no bolso, foi preso e libertado poucos dias depois quando alguém pagou a multa (o benfeitor, segundo o o boato, foi um aristocrata clemente, nada mais do que o duque de Portland, que declarou não querer passar por perseguidor de um moço que podia bem ser louco). Mas o vaso, reduzido a cento e oitenta e nove bocados em cima de uma mesa nas caves do museu, a serem examinados com lentes e pinças, foi reconstituído em sete meses por um intrépido e hábil empregado, mais o seu assistente.
Será que uma coisa despedaçada, e depois habilmente reparada, se pode considerar a mesma, a mesma que era antes? Pode, para os olhos, pode, se não se olhar demasiado perto. Não, para a mente."
Sem comentários:
Enviar um comentário