domingo, maio 31, 2020

Onde se fala da Procissão dos Abalos e de cocó de índio

Fotografia de Paulo Henrique Silva
Fotografia de Alberto Plácido
Já vinha de trás. No Verão passado, Jair Bolsonaro desvalorizara como «cocó de índio petrificado» um sítio arqueológico brasileiro responsável por uma moratória que travava a construção de um terminal de contentores em Paraná. Quando a extensão da BR-116 em Pelotas, Rio Grande do Sul, foi travada por esventrar um sítio arqueológico, Jair puxou de novo do grande livro das metáforas e justificou o obstáculo com a descoberta de «cocozinho em índio». Agora, com a divulgação da reunião do Conselho de Ministros do dia 23 de Abril, verifica-se a reincidência. Bolsonaro considerou o património arqueológico como «cocó petrificado de índio». Gabe-se-lhe a consistência das afirmações, embora o repertório esteja um bocadinho gasto.
As afirmações tontas da principal figura de Estado do Brasil são uma caricatura, coerente com a capacidade cognitiva da personagem, mas tipificadoras de uma percepção mais alargada de que nem todo o património cultural (arqueológico, etnográfico, arquitectónico ou imaterial) vale a pena preservar.
Vem isto a propósito da Procissão dos Abalos, que hoje deveria ter tido mais uma edição na ilha Terceira, não fossem as restrições impostas pela pandemia. No dia 31 de Maio de 2005, o pároco deu-nos autorização para acompanharmos todo o processo no âmbito de uma reportagem que publicámos sobre a capacidade dos açorianos para dormirem tranquilamente sabendo que, em toda a região autónoma, há vulcões activos. Para mim, ateu nunca tocado pela graça da fé, foi uma experiência notável. Para o Alberto Plácido, foi a oportunidade de fotografar uma experiência cultural rara. Para o vulcanológo Victor Hugo Forjaz, foi o pretexto ideal para gozar das carantonhas que nós fazíamos sempre que se escutava a ladainha.
Ao contrário de muitas outras procissões açorianas, a Procissão dos Abalos não celebra uma experiência mística, nem um culto popular. É uma das mais antigas procissões insulares (há uma mais antiga no Faial, mas com menor intensidade) criadas após (e devido a) uma manifestação vulcânica.
Entre 1867 e 1868, o vulcão submarino da Serreta entrou em actividade para pânico dos terceirenses. Antes desta, não se conhecia outra manifestação vulcanológica submarina desde o povoamento – depois, claro, tivemos os Capelinhos em 1957/58 e a Serreta de novo em 1998.
As casas frágeis tremeram durante um ano. A igreja abriu fendas. A população temeu pela vida. Na madrugada do dia 30 de Maio de 1867, espontaneamente, saiu pela primeira vez à rua uma procissão. Os participantes levaram as coroas do Espírito Santo e seguiram do cabo do Raminho até à Serreta. No regresso, a terra tremeu onze vezes. De cada vez que o solo estremecia, os participantes prostravam-se de joelhos e rezavam virados para o mar. Caminharam quase sete quilómetros. No cabo, foi rezada missa campal.
Se estavam à espera de uma narrativa mística, desenganem-se. A procissão não resolveu a catástrofe. Nos dias seguintes, mantiveram-se os abalos, mas, poucos dias depois da procissão, de facto, surgiu finalmente a erupção no mar, na ponta da Serreta, daquilo a que hoje chamamos uma erupção do tipo surtseyiano. O mar agitou-se. A lava brotou. A pesca tornou-se impossível durante semanas. É curioso que a população tenha caminhado precisamente para o ponto da ilha onde o vulcão se formava sob a superfície. Mais importante: graças a esta manifestação etnográfica, conseguimos cartografar a erupção, reconhecendo os pontos de reavivamento e de acalmia.
O vulcão cumpriu o seu ciclo de vida, avesso às tradições dos homens. A Procissão dos Abalos, que se passou a realizar sempre no dia 31 (de madrugada quando calha ao fim-de-semana ou ao fim da tarde quando o dia 31 coincide com um dia de semana) é uma das manifestações mais fervorosas do carácter açoriano. Ao observador ocasional poderá parecer pouco relevante ou mais uma entre muitas. Ao Presidente do Brasil, certamente pareceria cocó de índio. Mas é, na essência, um dos tijolos mais firmes do carácter terceirense. Fala-se muito agora em património imaterial, em tradições enraizadas no código genético de uma cultura. Não encontrarão melhor exemplo do que a Procissão dos Abalos, iniciada para aplacar a ira de um vulcão.
Garante-vos este ateu nunca tocado pela graça da fé. 

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