domingo, novembro 10, 2019

Ainda é possível travar o encerramento da Biblioteca-Museu República e Resistência?

Primeira página de "Acção", jornal conservador publicado entre 1936 e 1938 e entre 1941 e 1948, preservado do primeiro ao último número (sem falhas estranhas…) na colecção de Carlos Ferrão

Quis o destino que estivesse precisamente a ler as lamentações do jornalista Rocha Martins em 1934 sobre a perda para o estrangeiro da biblioteca de António Carvalho Monteiro (integrada desde 1929 na Biblioteca do Congresso, em Washington) quando tomei conhecimento do encerramento, previsto para a próxima quinta-feira, da Biblioteca-Museu República e Resistência (BMRR), em Lisboa. Passaram 85 anos, mas é triste constatar que o país continua a entender as suas melhores bibliotecas como espaços onde se sujam as mãos em jornais antigos.
Vale a pena historiar o processo de criação das bibliotecas locais integradas na rede de bibliotecas municipais. Durante o mandato de Jorge Sampaio à frente da Câmara Municipal de Lisboa, João Soares, então vereador da Cultura, entendeu que seria vantajoso ampliar a rede e integrar novas bibliotecas especializadas nos bairros onde estavam em curso os Processos Especiais de Revitalização. Foi o caso, entre outros, da BBMR, instalada primeiro num edifício da antiga vila operária Grandella, em Benfica, e deslocada para o bairro do Rego em 2001. Foi a primeira e única biblioteca especializada num processo decisivo da história do país, com um acervo que documenta a história dos anos finais da Monarquia, a Implantação da República, a Primeira República e o golpe militar de 28 de Maio de 1926.
No bairro do Rego, a biblioteca é mais do que um equipamento, como agora se diz. É um espaço implantado num bairro difícil, mas permanentemente ocupado por estudantes, moradores e investigadores que consultam as colecções, utilizam a Internet e dão-lhe vida. Testemunho semanalmente que, ao contrário da declaração infeliz da presidente da Junta de Freguesia das Avenidas Novas em Junho, a Biblioteca não está morta – vive com os meios que lhe dão e suporta a investigação de quem se dedica ao estudo deste período. Dá vida aos quarteirões em redor num bairro onde pouco mais existe e possui um património que extravasa as meras fronteiras da colecção que acolhe: num país onde a memória não é salvaguardada, dispõe de um corpo de funcionários que conhece a colecção e sugere, com frequência, rumos complementares de consulta.
Discute-se há anos o fecho das instalações sob o argumento piedoso de que são necessárias obras. Ocorreu uma primeira tentativa de encerramento no último mandato autárquico de António Costa, mas o ruído dos protestos silenciou então a iniciativa. No Verão deste ano, nasceu nova vaga, com o impulso decisivo da vereadora da Cultura para quem o espaço parece ser incómodo e inútil.
A Câmara Municipal de Lisboa e a Assembleia Municipal não assumem o fecho definitivo da BMRR, embora nenhuma das declarações dos decisores – cuidadosamente articuladas – prometa também a sua continuidade. Quem conheceu o destino do acervo que esteve no Bairro Grandella e que foi encaixotado para parte incerta aquando da última remodelação, com perda significativa por exemplo dos registos áudio que o historiador Carlos de Oliveira recolhera com muitos dos sobreviventes dos movimentos anarquistas do início do século, teme muito justamente que outros caixotes e outros armazéns fragmentem e danifiquem uma colecção que vale pela sua unicidade.
Numa semana em que a actividade em Lisboa parece ter-se resumido ao Web Summit, é provável que poucos no actual elenco autárquico valorizem o volume e relevância da documentação preservada na BMRR. E os que sabem o que está em causa parecem nutrir um indisfarçável desconforto ideológico com uma biblioteca que celebra os movimentos sociais que construíram a nossa República, em todas as suas imperfeições.
O pólo do Bairro do Rego/Cidade Universitária foi criado para acomodar a colecção de 26 mil jornais, opúsculos, folhetos (proibidos ou efémeros) recolhida pelo jornalista Carlos Ferrão durante 60 anos e vendida simbolicamente ao Estado Português em 15 de Julho de 1976 com a única condição de que o fundo preservasse o nome da sua viúva, Dulce. Estão ali documentos de movimentos operários e sindicais. Livros que não existem em mais lado nenhum sobre as sociedades secretas e partidos efémeros do final do século XIX e início do século XX. Edições de autor e edições clandestinas. Está ali, em resumo, uma pequena história da nossa República. Em toda a sua fragilidade. Vale pelo conjunto e a sua dispersão pelas múltiplas bibliotecas da rede impedirá a perspectiva de conjunto que a visão de João Soares celebrara em 1993.
Não deixa de ser tristemente irónico que a machadada final num projecto cultural iniciado por uma autarquia governada por forças socialistas e comunistas venha agora a ser dada por um elenco socialista tecnocrata, que enche a boca com a Implantação da República no 5 de Outubro, mas não preserva, incólume, o seu melhor fundo documental durante o resto do ano.

VERSÃO MAIS EXTENSA DE CARTA HOJE INSERIDA NO "PÚBLICO", 10 DE NOVEMBRO DE 2019