quinta-feira, outubro 05, 2023

Miguel Reis e a Frente Polisário


      Descubro pelo Facebook que morreu o Miguel Reis. Durante uma década – a década escaldante – o Miguel foi jornalista e não advogado. Os obituários que se escreverem provavelmente evocarão a curta temporada que dedicou ao jornal A Luta e a direcção do Portugal Hoje – em ambos casos, percursos pelo menos tão partidários como profissionais de que não se orgulhava muito. Prefiro celebrar o Miguel Reis do Jornal de Notícias.

A revolução de 1974 apanhou-o nas fileiras do jornal de Pacheco de Miranda, onde foi dos mais combativos. Tinha feito um curso de especialização em Paris e estava desejoso de mostrar os dentes. Entrevistou em exclusivo Emídio Guerreiro, logo em Maio desse ano – uma entrevista explosiva de Guerreiro sobre o círculo que rodeara Humberto Delgado no exílio. Obteve de Salgado Zenha uma confidência precoce de que os quadros da Polícia Judiciária seriam saneados. Era bom. Era muito bom jornalista.

Com bom acesso aos membros da Comissão de Extinção da Censura, foi dos primeiros a publicar materiais vetados durante o Estado Novo. A coluna chamava-se “Coisas da Censura” e recuperou pequenas pérolas como a circular de 1959, logo após o golpe castrista, que exigia: «Eliminar, no respectivo noticiário ou em artigos, referências a actos de crueldade ou fortunas acumuladas durante o regime de Baptista. Eliminar também a expressão fidelizar ou semelhantes, alusivas à instauração do esquerdismo revolucionário e anarquizante. Eliminar tudo que apresente Fidel Castro como grande personalidade e bem assim quaisquer referências elogiosas. São de publicar, porém, todas as críticas ou alusões pejorativas e ridicularizantes.» 

Teve chatices no JN, como tiveram vários jornalistas mais ligados ao Partido Socialista – sobretudo na delegação de Lisboa. Mas prefiro celebrar a sua coroa de glória, o episódio em que o Miguel bateu toda a concorrência e, com o Rui Ochoa e o embaixador Menezes Cordeiro, teve acesso exclusivo ao território sarauí. Os pescadores do “Rio Vouga” tinham sido raptados e um camarada argelino do Miguel perguntou-lhe se não queria obter o exclusivo de como eles eram bem tratados no deserto. O exclusivo sarauí foi do JN e o Miguel assegurou-me que chegou a ver, na embaixada portuguesa de Argel, um telegrama pessoal de Sá Carneiro «autorizando [Luís] Fontoura a reconhecer o novo estado», se preciso fosse. Fontoura era o advogado a quem fora atribuída a missão de trazer de volta os 15 pescadores.

Talvez a faceta que mais o divertiu em todo o casofora o desabafo de Luís Fontoura ao Conselho de Ministros: “Sobre a posição dos sarauís, o Jornal de Notícias sabe tanto ou mais do que eu.” 

 

sábado, janeiro 28, 2023

Fake news do século XVI

 




Granada, 29. A minha história favorita de Granada não tem que ver com o Alhambra. Está associada à Abadia do Sacromonte e envolve uma das maiores f alsificações da história.  Conto a versão abreviada e excessivamente simplificada. 
       Após a toma do Alhambra, em 1492, os muitos mouriscos de Granada ficaram em situação periclitante. Foram tolerados durante um século, mas seriam forçados por Filipe à conversão ou à expulsão na segunda década do século XVII. 
       Em 1588, como que por milagre, foi anunciada uma estranha descoberta nas grutas da colina sobranceira ao Albaicin – ao lado de restos humanos carbonizados, apareceram placas de chumbo com uma versão radicalmente nova dos Evangelhos. O monte, antes conhecido por Valparaiso, tornou-se Sacromonte.  
       Interpretados como textos do século I, contavam a vida de Jesus, filho de Maria, mas não o davam como filho de Deus — uma versão compatível com o credo muçulmano. Sugeriu-se a possibilidade de se tratar de um novo evangelho, escrito em latim e estranhos caracteres árabes, trazido para Espanha por São Cecílio (uma das figuras martirizadas na gruta). 
       A “descoberta” tinha fortes consequências. Sugeria que a população mourisca teria tanta legitimidade como a cristã para permanecer no reino. Iniciou-se um culto a São Cecílio e a abadia começou a ser erguida pouco depois. 
       Os documentos, apesar das reticências de alguns que desconfiaram do uso do latim num documento religioso tão antigo, foram enviados para a Santa Sé para estudo. Houve debate durante 40 anos. Durante 400 anos permaneceram ali (o cardeal Ratzinger só os devolveu a Granada no ano 2000). Mas sabe-se desde o século XVII que são falsos: eram engenhosas fabricações quinhentistas, criadas aparentemente por membros destacados da comunidade mourisca para legitimar a sua cultura num momento crítico. 
       Os livros plúmbeos são falsos, mas a abadia mandada construir por cima das grutas sagradas é bem real. Tal como a procissão de São Cecílio, que volta a sair à rua na próxima quarta-feira. Nunca se testaram as relíquias para confirmar as datações da Antiguidade.  
       Como dizem os italianos, non è vero ma ben trovato.

segunda-feira, janeiro 23, 2023

Quando a fonte mais fidedigna sobre um cidadão não é o próprio cidadão

 


       No cinquentenário do Expresso, há uma história engraçada que, creio, não foi contada. Envolve o tenente-coronel Vítor Alves, alvo em 7 de Dezembro de 1985 de uma notícia sem fonte citada que dava como certo o seu apoio à candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo. 
       Parecia apenas a espuma dos dias, própria das campanhas, mas Vítor Alves fez questão de escrever a José António Saraiva, director do jornal. Explicava, num ameno comentário (publicado uma semana mais tarde), que não aderira à candidatura da engenheira Pintassilgo nem a qualquer outra. 
       O incidente teria ficado sanado por aí, não fosse o jornal achar-se no direito de introduzir uma exótica nota de redacção após a carta do militar de Abril: «O Expresso não contactou, na verdade, o coronel [sic] Vítor Alves para confirmar o seu apoio à candidata Lourdes Pintasilgo [sic]. O candidato a deputado pelo PRD assegura nesta carta que não apoia qualquer candidatura. O Expresso limitar-se-á a acrescentar que mantém a sua informação, provindo de muito boa fonte, segundo a qual o ex-conselheiro da Revolução Vítor Alves tem vindo a manifestar as suas simpatias junto da candidatura da engenheira.» 


       Mantendo a elevação e o humor, mas com a mostarda já a chegar-lhe ao nariz, Vítor Alves lavrou um protesto ao Conselho de Imprensa. Queixava-se das fontes anónimas e das notas de redacção habituais no jornal, «receando que tenhamos chegado ao extremo ridículo em que a fonte mais fidedigna sobre um cidadão não seja o próprio cidadão, quando este decide clarificar as suas posições». 

Arquivo do Conselho de Imprensa/ANTT

       Na Duque de Palmela, Saraiva certamente percebeu que o jornal metera a pata na poça. Em Janeiro de 1986, argumentou ao Conselho de Imprensa que a nota de redacção «não foi inteiramente feliz». Mas reafirmava, em silogismo aristotélico de lógica irregular: «Uma fonte que tomamos como boa deu-nos essa informação. Cabe agora perguntar: foi a nossa fonte que se equivocou ou o ten. cor. Vítor Alves produziu alguma declaração que tenha legitimamente induzido em erro a fonte em causa? Caso se tenha verificado a segunda hipótese – e só o ten. cor. Vítor Alves poderá esclarecer o assunto – a culpa pelo mal-entendido seria imputável ao queixoso e não ao Expresso.» 
       Poucos episódios resumem tão bem o gosto do jornalismo político pelas fontes anónimas como este caso. A punchline? O Conselho de Imprensa entendeu «nada ter a condenar ao Expresso» ao abrigo da… Lei de Imprensa que Vítor Alves aprovara enquanto ministro.

domingo, janeiro 22, 2023

Um bom malandro, um deputado e uma eliminação do Sporting


       De vez em quando, três bons malandros reúnem-se em Odivelas, em frente de um tacho bem servido, e contam histórias uns aos outros. É uma espécie de competição saudável pela melhor narrativa. Esta semana ganhou um rapaz de Bogas com esta história que prova a omnipresença de A Bola de Vítor Santos, o humor de Jorge Sampaio e a memória dos tempos em que as sessões parlamentares decorriam pela noite dentro.

       Estávamos em Março de 1988 e a Assembleia fazia horas extra para aprovar legislação. Trabalhava-se a mata-cavalos e a ausência de peões neste xadrez implicava a aprovação matemática da legislação dos rivais.
       O governo era então suportado por uma maioria sólida de deputados do PSD, o que tornava hercúlea a tarefa do líder da bancada socialista, o futuro PR Jorge Sampaio, tentando segurar o dique contra a força da corrente.
       Às duas da manhã do dia 17, Sampaio pede clemência, lembrando que, na maioria dos parlamentos do mundo, só estão presentes os deputados com interesse evidente por um tema enquanto os outros trabalham no edifício noutros dossiers. Correia Afonso, pelo PSD, riposta de imediato, dizendo que os 80 deputados do seu partido ficarão ali até ser preciso.
       Sampaio contesta então: “Tenho estado a reparar – e devo dizer que cheio de inveja – que um dos tais 80 srs. deputados do PSD, por quem tenho tanta consideração e que se encontra na última fila da bancada, tem estado a ler o trissemanário A Bola, que é um jornal que também gosto muito de ler. Ora, eu, que também hoje comprei esse jornal, mas que ainda não o consegui ler porque me encontro na primeira fila da bancada, estou cheio de pena e se estivesse nas mesmas condições daquele Sr. Deputado, que tem todo o direito de ler A Bola, mas que infelizmente não tem um gabinete… A verdade é que, com estes novos aparelhos que permitem ver o que se passa no plenário, esse sr. Deputado poderia ter esta faculdade admirável que é ler A Bola e ouvir o que se passa no plenário.”
       Das bancadas ecoa uma gargalhada. O ambiente desanuvia. Na última fila da bancada do PSD (“o Terceiro Anel do Estádio Nacional de São Bento”), caçado pelo circuito interno televisivo, o jovem deputado Jaime Mil-Homens ruboriza e tenta fechar apressadamente as páginas gigantescas do jornal. Balbucia uma justificação. Calhou-lhe a fava, pois o jornal já percorrera toda a última fila.
       Correia Afonso brinca também: “Ler A Bola é olhar para um problema de desenvolvimento tecnológico”
       Sampaio remata: “Pois é, Sr. Deputado. Eu também lá estive pelo meu clube ontem na bancada.” E sacando do jornal do bolso, acrescenta: “Eu só queria dizer que, enquanto muitos deputados do PSD já tiveram tempo de ler A Bola de ponta a ponta, eu só na cama, antes de dormir, poderei saber como é que ‘isto’ correu ontem.”
       “Isto” era o empate do Sporting com a Atalanta na segunda mão dos quartos-de-final da Taça das Taças que custara a eliminação dos leões (também lá estive na bancada e vi o “frango” do Vítor Damas). Sampaio ganhou esse “round”, mas naturalmente perdeu a votação.
       Para provar que o Daniel não mente, aqui fica a página do Diário Parlamentar e uma crónica do autor em A Bola (10 de Fevereiro de 1995). As votações parlamentares nocturnas, essas, já são uma memória distante.

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Cinco instantâneos na vida de um grande jornalista

     


        Mundial de 1966. Eusébio dá nas vistas e chama todo o tipo de aventureiros. Uma marca de lâminas de barbear quer patrocinar o craque, mas não há ainda empresários, nem advogados. Eusébio não fala inglês. Pede ajuda a um calmeirão que se desenrasca bem em Londres (trabalha então para a BBC e para a Associated Press). Hernâni Santos negoceia por ele. Arranja-lhe dinheiro. Nao escreve sobre o tema para não criar invejas em Lisboa, nem atenção das finanças. Minutos depois, com os bolsos cheios, Eusébio volta ao hall do hotel. Reencontra Hernâni Santos. “Acho que podíamos ter extraído mais aos tipos, pá. E o Coluna também acha que sim.” Primeira lição: os craques do mundo podem ter pés de barro.


     Munique, 1972. Um repórter desportivo do Diário de Lisboa monta uma das grandes trapaças do ano. Faz-se fotografar numa fila da aldeia olímpica, logo atrás do campeão olímpico Valery Borzov. No instante exacto do disparo, faz uma pergunta inócua ao soviético. Pela foto, parece uma conversa. O redactor manda para Lisboa uma sensacional entrevista, inventada do princípio ao fim. O jornal publica e só descobre a trama dias depois. Hernâni Santos, um dos responsáveis, dá uma bronca épica ao infractor, mas não o despede. Sabe por experiência própria que a pena capital não se justifica à primeira ofensa. 


     Lisboa, 1979. Mega Ferreira congela perante as câmaras de televisão. Apresenta o programa de notícias da RTP 2, uma aposta directa da direcção de Informação de Hernâni Santos, e fica largos segundos parado, em silêncio. É uma bronca num canal que ainda está a provar a sua razão de existência. Pede-se a cabeça do jornalista. Hernâni defende-o apesar das pressões. No jornalismo, mandam os jornalistas. Pouco depois é Hernâni quem bate com a porta. “Não pactuo com filhos da puta.”


    Goa, 1980. Vassalo e Silva regressa ao local onde se rendera duas décadas antes. É uma cerimónia de reconciliação entre o novo poder democrático português e o regime indiano. O tom, porém, é azedo. Vassalo e Silva é condicionado a pedir desculpa à Índia, em nome de Portugal. Um embaraço diplomático. Só um jornalista está lá – Hernâni Santos, pelo Expresso. “Dá trabalho ter sorte.”


     Castelo Branco, 1981. Um contacto no mundo da espionagem britânica avisa Hernâni Santos de que um homem condenado por traição durante a Segunda Guerra Mundial está vivo em Portugal. A equipa do Tal & Qual descobre-o em Castelo Branco. É um discreto professor de liceu. Há quem não queira publicar a história para poupar o espião nazi ao embaraço. “Publicamos os factos, o público fará juízos morais.” A história sai. Como sempre saíram as histórias de Hernâni Santos.


     Grato pela amizade, Hernâni. Foi verdadeiramente um prazer!


 


sábado, dezembro 03, 2022

Espião, jornalista e empresário #2



       No Verão de 1935, Walt Disney realiza uma grande viagem de promoção pela Europa. O pretexto é a recolha de fontes de inspiração e locais de filmagem para os seus filmes, mas o motivo mais directo é comercial – Disney quer furar no Velho Continente. 
       Portugal entra na rota de Disney e a sua vinda é anunciada, embora a viagem não se concretize porque Walt teme um país mal servido por transportes e estradas. Mesmo assim, tem o cuidado de enviar presentes e brindes. Para esta campanha europeia, Walt traz centenas de bonecos de peluche e desenhos da sua famosa criação, o Rato Mickey. Traz também insufláveis gigantes que enchem os céus das capitais europeias. Distribui-os a personalidades que podem influenciar o sucesso da sua marca. Em Roma, as netas de Benito Mussolini são premiadas com peluches. Em Portugal, o pequeno Luís Fraga, neto do jornalista Acúrcio Pereira e afilhado de Luís Lupi, também recebe um.
       Descobrimo-lo da maneira mais inesperada. Quando “O Século” celebrou o Natal de 1940, publicou a fotografia de um bebé na primeira página – era Luís Fraga, com um ano de vida, rodeado de brinquedos e com o Rato Mickey em destaque. Lupi furara uma vez mais.
       No dia 6 de Dezembro, na Casa da Imprensa, lançamento do livro “Jornalista, Espião e Empresário” (Âncora), de Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira, com apresentação de Joaquim Vieira.

quarta-feira, novembro 30, 2022

A Gaffe do bruxo angolano


O Campeonato do Mundo de 2006 estava em curso e Angola estreava-se na grande competição de futebol. Por ironia do sorteio, a selecção africana fora colocada no mesmo grupo de Portugal. Tratando-se de uma nação com evidentes afinidades culturais, os jornalistas portugueses desdobravam-se para acompanhar o quotidiano dos palancas. 

Quem já acompanhou uma prova desportiva destas por um jornal sabe que é um trabalho maçador e pouco desafiante. É como uma refeição liofilizada que sabe ao mesmo para todos. O acesso aos protagonistas é mediado através de conferências de imprensa. Observam-se cinco minutos de um treino e é preciso empolar o mínimo pormenor para encher uma página de jornal ou 5 minutos de televisão.

Em Hannover, a acompanhar a selecção do sisudo mas competente Oliveira Gonçalves, estava um pequeno grupo de jornalistas portugueses. Um deles, enviado-especial do Record, conhecido pelo humor contagiante e desrespeito saudável pelas regras, lembrou-se de apimentar o dia 13 de Junho. Quando a comitiva técnica de Angola saiu do balneário para o relvado, apontou da bancada de imprensa para um elemento discreto, à paisana, que seguia os restantes treinadores a alguma distância. Baixou a voz e anunciou para os companheiros: «Sabem quem é? É o bruxo da selecção angolana. Foi importantíssimo para o apuramento.» Angola, de facto, qualificara-se in extremis, num jogo dramático no Ruanda.

O grupo riu-se. Não pensou mais na brincadeira. Alguns sabiam que se tratava do roupeiro da selecção. Era obviamente uma graça, mas há sempre um crédulo com complexos de Bob Woodward.

Nessa noite, na peça que a RTP transmitiu de Hannover, um dos jornalistas da estação pública contou aos portugueses – sem margem para dúvidas – que a selecção angolana empregava um bruxo para melhorar o desempenho no Mundial. Juntou mais alguns pormenores da sua lavra “à fonte original” e compôs o “furo”. Foi o pandemónio. A fake-news tornara-se real.

Na conferência do dia 15 de Junho, Oliveira Gonçalves denunciou a notícia. Compreensivelmente agastado e de dedo em riste para o jornalista da RTP, lembrou que a sua equipa técnica estudara nas melhores escolas de desporto, como os portugueses. E, com razão, disse também que a notícia da bruxaria só fora plausível porque envolvia uma selecção africana. Vermelho de raiva, não parava. E quanto mais se apercebia de que parte dos jornalistas portugueses já não conseguia disfarçar o riso ou manter-se de pé, mais se enfurecia.

Angola conseguiu dois empates históricos nesse Mundial. Talvez o bruxo tenha ajudado.

domingo, novembro 27, 2022

Espião, jornalista e empresário #1

        Na manhã de 24 de Março de 1946, uma criada entra no quarto 43 do Hotel do Parque, no Estoril, e encontra o xadrezista Alekhine morto, sentado num cadeirão, com os restos do jantar da véspera e com um tabuleiro em situação de jogo à sua frente. 

        Luís Lupi, correspondente da Associated Press, corre para o Estoril. Pede emprestada uma máquina fotográfica a um funcionário do hotel e capta três fotografias no quarto de Alekhine. São imagens macabras destinadas à imprensa internacional. Nenhum jornal nacional as publica.

        Há suspeitas de que Lupi compôs o cenário e até de que foi dele a ideia de colocar um tabuleiro à frente do defunto. Sempre dramático, o jornalista escreve para a sede da AP em Nova Iorque: “O gigante do xadrez, morto, parecia um cavalo derrubado”.




No dia 6 de Dezembro, na Casa da Imprensa, lançamento do livro “Espião, Jornalista e Empresário” (Âncora), de Wilton Fonseca e Gonçalo Pereira Rosa, com apresentação de Joaquim Vieira.

sábado, novembro 26, 2022

Espião, jornalista e empresário


       Esta história começou há muitos anos, no dia em que uma viúva entrou na sede de uma agência noticiosa e pediu para falar com alguém que a ajudasse a clarificar o papel do marido na história do jornalismo, da política e da diplomacia portuguesa.

       Foi o fio que revelaria a meada do trabalho que o Wilton e eu fomos desfiando nos últimos anos. Falarei bastante sobre este projecto nas próximas duas semanas, mas, para já, estão convidados a guardar a tarde de dia 6 na agenda. Espero ver-vos na Casa da Imprensa.


sábado, novembro 19, 2022

O Mundial da Junta


       As indignações sobre o Campeonato do Mundo de futebol organizado no Qatar revelam como sempre memória curta. Esta não foi a única atribuição polémica de uma grande prova desportiva a um regime questionável nem será a última. Houve outra que bem merece uma crónica porque envolve o maior jornal desportivo nacional e um episódio de censura flagrante.

       A atribuição da organização do Mundial de 1978 à Argentina fora decidida 12 anos antes, em Inglaterra, e não mereceu contestação. O cartaz oficial da prova, aliás, reproduz a saudação clássica de Juan Perón às multidões, com os dois braços erguidos. A FIFA só não contou com o golpe militar de 1976. A partir de então, ficou a braços com um problema diplomático, mas decidiu não agitar as águas. 

       O país sul-americano passou a ser governado por uma junta militar que fazia desaparecer pessoas e que rapidamente viu na prova uma oportunidade de limpar a sua imagem à escala global. O cartaz peronista, já amplamente divulgado, não foi substituído, mas a Junta meteu a pata em tudo e ainda hoje subsistem acusações de que a selecção da casa foi “empurrada” até à final.

       Mal a bola começou a rolar (tal como vai suceder no Qatar), as críticas perderam força. Só interessava o jogo. A imprensa portuguesa estava então praticamente estatizada e poucos jornais puderam levar enviados-especiais a Buenos Aires, sobretudo porque a selecção portuguesa voltava a não marcar presença. “A Bola” foi uma das excepções — enviou Vítor Santos, o chefe da redacção, e um segundo jornalista.

       Enquanto estiveram na Argentina, os jornalistas de “A Bola” (o segundo identificar-se-á se quiser porque anda por aqui) cobriram como puderam os jogos da prova. E fizeram em Buenos Aires o que Vítor Santos sempre pedia aos jornalistas no estrangeiro: crónica de costumes. 

       Mais afoito do que o chefe da redacção, o segundo jornalista andou pelas ruas, visitou o cemitério onde está sepultada Evita Perón, recolheu notas sobre o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se juntavam em silêncio para chorar o desaparecimento dos filhos. Publicou o que pôde (no dia 29 de Maio, perguntava: “Um hino nacional que fala em liberdade pode ser cantado por todos os argentinos?”) e guardou os textos mais cáusticos para quando regressasse a Portugal para «não desaparecer também», como me contou.

       O Mundial acabou no dia 25 de Junho de 1978 e os enviados-especiais regressaram a Lisboa. 

       O jornalista escreveu duas a três crónicas com as suas impressões. Carlos Miranda, o director, já estava em França, acompanhando a Volta velocipédica e Vítor Santos, ansioso pelo descanso, seguiu para férias em Portimão, o refúgio informal das chefias de ”A Bola”. Na azáfama de um jornal efervescente, Alfredo Farinha seguira para a China acompanhando uma digressão do Sporting e Joaquim Rita para o Canadá com o Benfica. Ficaram a subdirectora Margarida Ribeiro dos Reis, filha de um dos fundadores do jornal, e Carlos Pinhão, subchefe da redacção.

       Os textos foram entregues. Os dias passaram e o jornal não os publicava. A subdirectora vetou-os porque continham «ofensas a um chefe de Estado» – ofensa proibida pela Constituição portuguesa. Era o argumento escolhido para não agitar águas num país ainda barricado em facções políticas e num jornal que quase sempre preferiu a prudência à temeridade. Gerou-se discussão na redacção quando o caso foi conhecido. Dividiram-se os campos, como sempre acontece. Carlos Pinhão não se pronunciou.

       O processo chegou ao Conselho de Redacção, que emitiu uma nota de censura à direcção. O passo seguinte deveria ter sido a entrega do caso ao Conselho de Imprensa, nos termos da lei, mas o regresso do director acalmou as águas. “A Bola” não escreveu sobre a Junta Militar da Argentina em 1978, o país onde desapareciam pessoas sem deixar rasto.

* Versão actualizada com correcção de dois erros factuais.

domingo, dezembro 26, 2021

Morreu o João Paulo Cotrim

 


       Morreu hoje o João Paulo Cotrim e o dia ficou ainda mais triste. 
       Alguns recordá-lo-ão (e bem) como o jornalista que extraiu de Luiz Pacheco a frase emblemática. Outros (e bem) como o divulgador de banda desenhada, a paixão da sua vida. Outros ainda (com justiça) como o editor literário da Abysmo e da Arranha-Céus. Recordo, neste cantinho, o João como camarada de tertúlia e dos almoços épicos na Mimosa. 
       Homem de extravagâncias culinárias e de generosidade inigualável. Editor corajoso e apaixonado por uma boa história, qualquer que fosse o veículo de transmissão. Nunca dizia que não. Abraçava os projectos. Envolvia-se. Encorajava. As aventuras que tive na banda desenhada devo-as a ele e à maneira cinematográfica como projectava os guiões. 
       Deixou dezenas de livros por escrever, apesar de ter indexadas na Biblioteca Nacional pelo menos 76 obras com o seu nome. Releio o que ele escreveu em 2012, em Jogo da Glória, sobre Stuart Carvalhais e percebo agora que, de alguma maneira, o João também já estava a escrever sobre si: «Stuart não foi um autor qualquer: foi livre como uma nuvem. Participou nos movimentos artísticos do seu tempo, mas não produziu obra. Assinou milhares de estilos, mas não se pode dizer que pertença aqui ou ali. Possuía cartas de nobreza que cuspiu nos códigos de conduta e de vida triste. Andou pelos salões da intelectualidade, mas escolheu a rua. Esta absoluta liberdade, também ideológica, tornou-o oficiante da vida popular contra todos os preconceitos burgueses, mesmo aqueles dos supostos anti-burgueses. Cantou a Lisboa suja e dos gatos. Perseguiu as varinas e nelas as pernas, sinal maior do movimento. Aceitou a droga, o álcool e a Lua, e em sua companhia foi ao encontro de rostos conhecidos, da miséria e dos miseráveis, da novidade que se escondia no cinema, da vertigem das redacções, da amizade, dos amores. Não fez profissão do desenho de humor, mas um desejo ardente que aqui e ali o alimentou. Ocupou-se essencialmente em viver, tendo o desenho como ferramenta, arma, bengala e ei-lo personagem principal de um romance.» 
         Que saudades vamos ter de ti, João! Um beijinho para a Isabel!

domingo, novembro 14, 2021

Jornais Diários Portugueses do Século XX: Um Dicionário


 


        Em Biblioteca de Babel, Jorge Luis Borges propõe a tese de que cada livro é um labirinto para ler o mundo, com uma chave predeterminada e encerrando em si os vestígios do contexto em que foi produzido. Alargando a metáfora do escritor argentino, também os jornais obedecem a essa lógica. Cumprem uma função cultural, fazem sentido durante o seu contexto e esfumam-se depois nas caves das bibliotecas, consultados esporadicamente por arquivistas e bibliófilos ou sendo esquecidos para sempre. Cobertos pela poeira do tempo, guardam como num túmulo as glórias e tragédias que em tempos tanto valorizaram. 
        Há muito que Mário Matos e Lemos se dedica à recuperação da memória da imprensa portuguesa do século XX. Em 2006, publicou o monumental Jornais Diários Portugueses do Século XX: Um Dicionário (Ariadne Editora), uma obra rapidamente esgotada que inventariou os acervos das principais bibliotecas portuguesas, identificando a longa necrologia do jornalismo impresso do país. Em mais de seiscentas páginas, o autor produziu então um dos volumes mais úteis deste campo de investigação, um verdadeiro tira-teimas de nomes e títulos que construíram o edifício precário da letra de forma do país. Tornou-se, sem favores, a obra de referência da história do jornalismo nacional. 
        Década e meia volvida e acedendo a múltiplos pedidos de investigadores e estudantes, o autor e a Imprensa da Universidade de Coimbra publicaram, no final de 2020, uma versão revista e aumentada do trabalho tabelional então encetado. Na nota introdutória, o historiador Luís Reis Torgal saúda o autor «que tem feito da História uma ciência objectiva – e não uma história ideológica ou uma ideologia historiográfica – que dá prioridade à difícil análise de documentos de todo o tipo». Prossegue também com um desafio à nova geração de investigadores desta área, incitando-a a ampliar o trabalho documental já produzido, prolongando-o temporalmente para as duas primeiras décadas do século XXI e conferindo mais continuidade aos raros títulos da imprensa nacional e regional cuja história se expressa em três séculos e que, por natureza, fica espartilhada num volume desta natureza. 
        Além de passar a pente fino todos os periódicos deste período, corrigindo pequenas gralhas do volume anterior, Mário Matos e Lemos levou o esforço para um novo patamar, abrangendo agora mais sete títulos negligenciados em 2006 e alargando a busca de colecções de jornais das quatro bibliotecas iniciais (a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Municipal de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Biblioteca Pública da Universidade do Porto) a uma quinta instituição (a Hemeroteca Municipal de Lisboa). 
        As colecções de jornais estão, na maior parte destes acervos, em estado deplorável e muitos títulos já não sobem sequer às salas de leitura geral dado o risco de deterioração definitiva dos jornais. O impulso de digitalização da década de 1990 esfumou-se. Esta obra, além das suas inquestionáveis virtudes, tem ainda o condão de servir de lembrete (porventura o último) para a necessidade urgente de restaurar colecções, digitalizar materiais e sacudir a poeira que caiu sobre a produção jornalística. O Brasil, país de múltiplas virtudes e defeitos, leva-nos vinte anos de avanço ao abrigo do seu projecto de Memória dos Jornais. Quando começaremos a olhar para as nossas bibliotecas de papel?

sexta-feira, outubro 22, 2021

A estátua de Dona Leonor

          Já reparou neste monumento dedicado a Dona Leonor nas Caldas da Rainha? 

Magnânima, de Maximiano Alves

        E neste, também consagrado à rainha que fundou e custeou as obras do hospital termal? Também não?       
Proposta de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos

        Na verdade, eles só existiram em maqueta, mas foram peças importantes de um escândalo que divertiu Lisboa no Verão de 1930 e irritou os caldenses. 
        A história não poderia ser mais portuguesa nos seus pormenores requintados. 
        No dia 21 de Março, o jornal A Gazeta das Caldas abriu um concurso para a execução de uma peça escultórica consagrada à rainha Dona Leonor. Iniciou-se uma subscrição pública, que rapidamente superou a fasquia de cem contos. O resultado do concurso foi desvendado no dia 10 de Agosto, depois de a Comissão Executiva do Monumento ter solicitado à Sociedade dos Arquitectos, à Sociedade Nacional de Belas-Artes e à Comissão Administrativa das Caldas da Rainha a nomeação de um júri constituído por três arquitectos e dois escultores. Foram escolhidos para o júri os arquitectos Adolfo Marques da Silva, José Coelho (em substituição de Porfírio Pardal Monteiro) e Eugénio Correia, os escultores Salvador Barata Feyo e Raul Maria Xavier e o pintor Eduardo Romero. 
        Foram a concurso treze propostas, um número fatídico como mais tarde se veria. 
        Após deliberação, o júri premiou a proposta do escultor Maximiano Alves em parceria com os arquitectos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade. A obra intitulava-se Magnânima e a apreciação do crítico do Diário de Lisboa no dia 11 de Agosto (presume-se que Artur Portela) concordou com a escolha, não deixando de notar que «não nos parece de boa doutrina discutir as decisões do júri, visto que todos os artistas que entraram no concurso tinham conhecimento da sua constituição (…)». O texto parece sugerir que a própria sessão de divulgação de resultados foi agitada. «O júri escolheu por maioria a obra de Maximiano Alves e irmãos Andrade, sem parcialismos [sic] nem camaradagens suspeitas. Entre as treze maquetas apresentadas, triunfou de facto a que merecia o primeiro prémio», certificou o crítico. 
        Nem todos viram assim o assunto. Uma semana mais tarde, o Notícias Ilustrado, dirigido por Leitão de Barros, lançou a confusão. «Já é tempo de se exigir que os monumentos da nossa terra sejam feitos pelos que têm valor para os fazerem e não pelo primeiro negociante de estátuas que só vê o negócio», escreveu-se. A revista quebrou igualmente as regras de anonimato, contando aos leitores quem apresentara cada proposta, embora as maquetas fossem anónimas e apenas tivessem sido identificados formalmente os dois primeiros prémios. A partir de então, estoiram como «bombas de grande potência vários protestos de autores que se acham lesados», escreveu A Gazeta das Caldas
Maximiano Alves em fotografia de O Século


        O Diário de Lisboa foi o campo de batalha e o escultor António da Costa, cuja proposta fora mal pontuada, investiu como um touro: «A decisão tomada pelo júri (…) não só não satisfez mas indignou todos os artistas.» O escultor apontava critérios estéticos para considerar melhor a segunda maqueta, da autoria de Leopoldo Almeida e Carlos Ramos e lançava depois uma acusação grave: «Um dos escultores (Raul Xavier) é, além de companheiro de atelier, colaborador do escultor classificado em primeiro lugar. É isto admissível?» 
        Três dias mais tarde, a 15, António Montês, membro do júri, defendia-se: «Falta de competência dos júris ou falta de competência dos nossos artistas?», perguntava. «Sou de opinião, neste caso em que tive interferência, que a falta é dos segundos e não dos primeiros. (…) As Caldas querem unicamente um monumento em tudo condigno da figura a glorificar (…) Dá vontade de pôr uma pedra sobre tudo isto e de levantar nas Caldas, em lugar do monumento, um edifício moderno, onde se instalasse qualquer obra de assistência que talvez fosse a melhor homenagem à benemérita rainha Dona Leonor e que constituiria um grande ensinamento aos nossos artistas.» 
        No dia 21, o pintor Eduardo Romero questionava António da Costa sobre as incompetências apontadas: «Permita-me o distinto escultor [que] lhe pergunte onde acaba esta para me habilitar e não ficar convencido de que a sua irritabilidade é motivada apenas por divergências de opiniões sobre matéria de arte.» 
        Picado, o escultor rebateria de imediato a charge, acusando um dos escultores do júri de… nem sequer ser escultor: «Qual é a obra do sr. Raul Xavier – que nem o 1.º ano do curso de escultura de qualquer escola de Belas-Artes tem – que lhe dá competência para julgar trabalhos de escultores com o curso da especialidade, alguns dos quais são mestres consagrados?» E voltava a lembrar a proximidade do visado com o escultor premiado. 
        No dia 26, numa longa carta, Raul Xavier defendia-se. Lembrava que o escultor Francisco Franco também só obtivera a carta de curso em 1930 porque em Portugal esta era difícil de obter. Recordava que Ernesto do Canto também não a tinha. E dizia: «O sr. António da Costa finge ignorar obras minhas. Esqueceu-se, porém de que trabalhou no meu atelier enquanto não teve atelier seu. Viu-me trabalhar a seu lado no barro e cortar o mármore (coisa que o sr. António da Costa nunca fez). Sou de facto amigo e frequento o atelier do sr. Maximiano Alves, onde tenho trabalhado. Essa circunstância levou este meu colega a procurar-me na manhã do dia 10 do mês passado e observar-me que eu deveria declinar o cargo para que tinha sido nomeado, não fosse esta nossa boa camaradagem ser malevolamente explorada, como, penoso é dizê-lo, se está fazendo. Observei-lhe que tinha e tenho uma noção bem definida do que é a dignidade e que portanto o meu voto iria para a maquette que em meu entender o merecesse – e assim fiz».
        Raul Xavier terminava a sua carta com um repto: «Intimo o sr. António da Costa a, em concorrência comigo e perante um júri idóneo, modelar um modelo nu e passá-lo à pedra desde o bloco em bruto até ao seu final acabamento. Estas provas serão prestadas na Sociedade Nacional de Belas-Artes de que ambos somos sócios, em quarto fechado. (…) Desde já fique bem assente que qualquer escusa do sr. António da Costa classificará a sua competência e dignidade profissional.» 
        O repto não foi aceite. Outros intervenientes escreveram. Por fim, os vencedores da proposta entraram na liça, questionando o mau perder de todos os envolvidos. Perante tamanha controvérsia, a Comissão Executiva decidiu cancelar o concurso em Janeiro de 1931. Todas as maquetas foram portanto rejeitadas. 

A estátua de Francisco Franco 

        O monumento foi depois encomendado directamente a Francisco Franco (que não participara no concurso original e que já então era um artista consagrado, tendo modelado o famoso busto de Salazar). É essa a estátua que está, desde então, nas Caldas da Rainha.

A proposta de Anjos Teixeira

A proposta de António da Costa


A proposta de Francisco dos Santos 

A proposta de Júlio Vaz


A proposta de Luís Fernandes

A proposta de Norte Júnior

A proposta de Simões de Almeida, Leopoldo de Almeida e Carlos Ramos


terça-feira, outubro 19, 2021

Quem desenhou a Noite Sangrenta?

 


        Os jornais de hoje estão repletos (e bem) de Aristides Sousa Mendes, mas hoje cumpre-se também uma efeméride trágica – o centenário da Noite Sangrenta, a noite de 19 de Outubro de 1921 durante a qual foram abatidas seis pessoas, incluindo o primeiro-ministro António Granjo e Machado Santos, o herói da Rotunda. 
        O episódio foi interpretado e estudado amiúde ao longo deste centenário, desde o opúsculo de Berta Maia sobre as suas conversas com o «Dente de Ouro» (As Minhas Entrevistas com Abel Olímpio, o ‘Dente de Ouro’) à reflexão de Bourbon e Meneses sobre o caso (Os Crimes de 19 de Outubro), passando pela reconstituição de Consiglieri Sá Pereira (A Noite Sangrenta) e pela obra importante de José Brandão (A Noite Sangrenta), não esquecendo a peça de teatro premiada de Hélder Costa (O Mistério da Camioneta Fantasma). 
        Este contributo é infinitamente mais modesto. Nas semanas subsequentes à matança, foi divulgada uma gravura nas páginas da imprensa. O jornal A Imprensa da Manhã, que ajudara a acicatar os ânimos e que, no próprio dia da chacina, apelara à audácia dos revolucionários à maneira de Danton, publicou-a. O desenho tornou-se, de alguma maneira, o ícone do episódio. Representa Granjo no Arsenal da Marinha, indefeso perante a turba que o executa a sangue frio e não costuma ser creditado. 
        Tudo indica, porém, que a ilustração foi criada pelo jovem Leitão de Barros, então com 25 anos e à procura de uma oportunidade profissional. O gravador terá sido Martins Barata. Não só o crédito de ambos figura nas páginas do jornal de 11 de Novembro de 1921 como Barros é protagonista de uma carta surreal no dia 27 – carta essa que, adivinho, bem gostaria de varrer para debaixo do tapete nos anos seguintes. 
        Leitão de Barros terá então escrito ao jornal, queixando-se: «Como sou desenhador e ganho dinheiro desenhando, entendi que tinha o direito de exercer a minha profissão executando a iconografia dos sucessos da noite de 19 de Outubro. Nada absolutamente tenho nem quero ter com política», dizia. 
        «Segundo os relatos de alguns jornais, reconstituí o crime de que foi vítima António Granjo, ex-Presidente do Conselho, tendo todo o cuidado de desenhar apenas figuras perfeitamente anónimas para não levantar suspeitas ou ferir injustamente quem quer que fosse. Segundo o relato do ministro da Marinha do governo Manuel Maria Coelho, era um facto que indivíduos vestidos de marinheiros tinham tido acção neste caso, motivo porque lá aparece realmente uma figura fardada» – continuava. 
        Leitão de Barros lembrava que também no regicídio de 1908 se reconstituíra o atentado em todo o mundo sem que ninguém se sentisse lesado. Desta vez, porém, a Marinha sentira-se vexada. «Pois, senhor redactor, acabam de me proibir de vender os postais que reproduzem o desenho publicado pela Imprensa da Manhã (que aliás não foi apreendida e fez até duas edições) e de intimar a Casa Paulo Guedes a retirar das suas montras o original desse desenho.» 
        O desenhador sentia-se atacado na bolsa. «Com que direito se pode proibir um pacato cidadão que paga os seus impostos o exercício da sua profissão? Quem me indemniza dos prejuízos que tal proibição me causa? (…) O público que ajuíze e eu que pague… e me cale.»

A Imprensa da Manhã, 27 de Novembro de 1921

quarta-feira, outubro 06, 2021

Os ovos de Velázquez

 


       Foi um dos trabalhos mais ousados do jovem Diego Velázquez e poderia estar em Portugal. Uma Velha Cozinhando Ovos terá sido pintado em 1618, aos 19 anos, pelo artista sevilhano (neto aliás de um portuense). 
       Já contém as marcas que farão de Velázquez o artista de referência no século XVII espanhol: o jogo entre claros e escuros, a definição criteriosa do movimento e das personagens, a representação das actividades de quotidiano que tanto chocavam os contemporâneos. 
       Uma década mais tarde, Vicente Carducho, pintor e historiador, lastimará a representação na tela “dos homens de trabalho, sem conhecimento ou reflexão, que degradam a arte nobre para noções vulgares, como hoje vemos nas representações dos bodegones”. O catálogo do Museu Metropolitano de Nova Iorque consagrado à exposição do pintor em 1989-90 não teve dúvidas em considerar que Carducho escrevia sobre Velázquez. 
       O quadro, pintado por Velázquez antes de se radicar em Madrid, viajou mais do que muitos seres humanos: sabe-se que, no século XVIII, já não estaria em Espanha, vendido para a Bélgica e depois para Paris. Foi comprado num leilão em 1813 por Samuel Peach, que o adquiriu por engano – julgava comprar uma obra de Bartolomé Murillo e levou um Velázquez! Reconhecida a autoria, a obra foi vendida em mais duas ocasiões até chegar, em 1863, às mãos de Francis Cook. 
       Este industrial têxtil inglês escolhera então Monserrate para passar as temporadas de Verão. Reconstruiu o palácio, criou os jardins e começou a constituir uma colecção ecléctica em Sintra, semelhante à dos velhos gabinetes de curiosidades: um busto romano aqui, uma estátua grega acolá, sarcófagos e múmias, quadros clássicos e modernos. Em 1863, adquiriu esta obra, embora não se saiba se chegou a estar exposta em Sintra ou apenas na sua residência londrina. 
       O tempo passa e as fortunas esfumam-se. As duas guerras mundiais abalaram as finanças familiares. As três gerações seguintes procuraram manter incólume a colecção artística, bem como o jardim e palácio de Monserrate. Em 1929, foi feito um primeiro contacto para tentar que o governo português adquirisse a propriedade e recheio, evitando o loteamento. Em vão. 
       Em 1946, a família fartou-se de esperar e iniciou a venda rápida de todos os bens móveis. Houve um leilão em Lisboa, despachado em três dias. Os directores dos principais museus nacionais compareceram, mas limitaram-se a seguir com os olhos as peças que voavam para o estrangeiro. Monserrate foi vendida a um industrial português que, um ano depois, foi “persuadido” a vender ao governo. Já estava então sem recheio e em acelerado processo de decomposição. 
       Saúl Saragga, o industrial, pretendia dividir Monserrate em várias parcelas. Como notou a dissertação de mestrado de Marta Ribeiro, foi necessário que Flávio Resende, director da Faculdade de Ciências de Lisboa, intercedesse directamente junto de Salazar para que o processo irreparável fosse travado. Em 25 de Maio de 1949, a velha propriedade de Cook tornou-se, por fim, pública. 
       E Velázquez? A família manteve o quadro na sua posse por mais uma década, talvez ciosa do carinho que o patriarca mantivera pela velha cozinheira. Em 1955, finalmente, os Trustees da Família Cook cederam-no à National Gallery de Edimburgo, onde está exposto desde então. Assim fugiu um Velázquez que poderia cá estar.

domingo, setembro 26, 2021

A mosca Peter Pan


 

        Era perfeita de mais. Os entomólogos chamavam-lhe a mosca Peter Pan porque 38 milhões de anos de evolução pareciam não ter afectado a morfologia do insecto. Até que se descobriu que era uma fraude da época victoriana, embora já constasse em todas as bíblias da entomologia. 
    
        É uma pena que o Museu de História Natural de Londres já não tenha em exposição a peça que, durante sete décadas, foi uma estrela da colecção de referência de insectos. A mosca Fannia scalaris, capturada em âmbar, chegara ao museu londrino com a indicação de que provinha do Báltico Foi estudada e valorizada por ser, de longe, o exemplar mais antigo conhecido da família Muscidae, a das moscas domésticas. Era apontada como uma irregularidade – um exemplo de um organismo que permanecera quase idêntico ao longo do seu percurso evolutivo, sem deixar descendência e adquirindo características que os membros da sua família tardaram milhões de anos em adquirir. Era o Peter Pan das moscas, eternamente jovem. 

    Certo dia de 1993, o estudante Andrew Ross examinou-a ao microscópio. Apercebeu-se então de algo que nunca ninguém notara: uma linha de fractura corria ao longo de toda a peça de âmbar. Compreendeu que tinha em mãos uma fraude: no século XIX, uma peça genuína de âmbar do Báltico fora cortada ao meio por um ourives, que depois escavara um pequeno orifício para depositar a mosca. Infiltrou a mosca e preencheu a cavidade com resina. A fase derradeira da burla foi colar de novo o âmbar, de forma suficientemente credível para enganar um dos muitos coleccionadores daquela época. 

    Não se sabe quem comprou a peça, mas poderá ter sido o entomólogo alemão H.F. Loew, que a referiu pela primeira vez em 1850. Em 1922, o Museu de História Natural comprou trezentos espécimes do espólio de Loew e a mosca veio nesse lote. Foi citada desde então. 
    
 Se eu fosse curador de um museu de história natural, não deixaria de expor exemplares como estes. Um fóssil que não é fóssil é um testemunho da avidez com que, no século XIX, se procuravam espécimes raros sem as precauções mínimas. Estou certo de que, nas nossas colecções, também existem fraudes destas. Fósseis que não são fósseis; peças arqueológicas fabricadas em laboratório; documentos medievais escritos na véspera. À sua maneira, também contam a história da ciência.

quinta-feira, setembro 23, 2021

Ensaio sobre um arqueólogo apaixonado pelo que fazia


 

    Por José de Encarnação, soube agora que faleceu o arqueólogo Manuel Maia e, com ele, vai também uma época especial da arqueologia portuguesa – não discuto se pior ou melhor, se mais ou menos empenhada, se mais ou menos politizada. Esse debate pertence à esfera dos especialistas e dos praticantes da disciplina. 

     Direi apenas que me entendi com Manuel Maia por sinais de fumo. Tinha um faro de perdigueiro, um jeito natural para as descobertas retumbantes. Bem sei que a arqueologia se faz mais de regularidades do que de excepções, mas o casal Manuel & Maria Maia foi, à sua conta, responsável por algumas das mais notáveis descobertas dos últimos trinta anos no Sul de Portugal. E isso, tenham a paciência, terá de constar em qualquer obituário escrito sobre Manuel Maia. 

     Os detractores (porque os também os tinha) revoltavam-se com a sorte. Em vários pontos do país, ouvi gente a barafustar com a facilidade com que, à primeira cavadela, os Maias encontravam um filão. Foi assim por exemplo com o signário de Espanca, a pedra de Roseta da escrita do Sudoeste – o único exemplar conhecido de uma estela onde um mestre escreveu o abecedário dessa escrita invulgar e um aprendiz tentou replicar os signos. A peça da Idade do Bronze deverá ter estado colada a uma parede com barro e caiu durante as escavações de 1996. A seus pés. “Sorte é estar lá e perceber a importância do que se encontra”, disse-me em 2005 ou 2006. Bem à sua maneira, ouvi-o esbracejar mais tarde: “Evito este termo de escrita do Sudoeste que por aí anda. Prefiro escrita turdetana.” 



     Em 1994, durante uma escavação em Santa Bárbara dos Padrões, um dos estudantes envolvido numa escavação de emergência (a autarquia entrara de bulldozzer no terreno contíguo a um velho cemitério) entrou na vala e saiu de lá com meia lucerna. “Nesse dia, trouxemos cinco sacos de supermercado repletos de fragmentos.” A escavação que seria de poucos dias transformou-se numa campanha de quatro meses. Apareceu uma vala cheia de lucernas, um depósito do mundo romano. Cinco, cem, mil... “Terão sido dispostas em cestos, como as chávenas numa máquina de lavar moderna”, explicou, com a habitual paciência do divulgador de ciência que também era. Com o tempo, apareceram 20 mil lucernas, a maior colecção do mundo, naquilo que terá sido um importante santuário do mundo romano. “E há mais para escavar, Gonçalo” – disse-me em Fevereiro de 2018. “Há mais...” 



     Tinha curiosidade genuína sobre os assuntos que estudava. Sabia também as suas limitações. Nunca hesitou em chamar peritos de outros campos, como o géografo que o ajudou a extrair sentido do Itinerário de Antonino Pio, ou a química que lhe pediu para colher amostras das lucernas para tentar perceber que substâncias se queimariam na Antiguidade (veio a descobrir-se que, além do azeite, também a cera de abelha e a resina serviriam). 

     Perdeu-se por vezes em polémicas e não esquecia as afrontas. Nunca escondeu por que não foi aceite para doutoramento nem as causas que (achava ele) tinham estado subjacentes à decisão universitária. Batia-se pelo princípio de que concederia o ponto se lhe provassem que não tinha razão. Morreu convencido de que Castro Verde fora Aramis, dos aramitanos, citados por Plínio. Adorava mostrar as Larnakés encontradas no sítio de Neves I como prova da influência evidente das culturas do Mediterrâneo Oriental na Península Ibérica. Propunha a tese da proliferação dos castelos no Sul do país como marca da presença romana não exclusivamente militar. Com dois elementos, fazia conjecturas e explorava hipóteses. Essa predisposição para a imaginação valeu-lhe alguma sátira. Nunca se ralou. Era um franco-atirador e os francos-atiradores também falham tiros.



     A morte da esposa foi um golpe rude. Houve um ano em que não consegui sequer contactá-lo. Recompôs-se. Pôs-se de pé e fez, no Museu da Lucerna, um pequeno altar com as recordações da carreira da mulher. 

    Fascinava-me sobretudo pela memória. Foi com ele que debati o fascínio dos pides pela arqueologia no Alentejo e as figuras controversas de Manuel Heleno, Farinha dos Santos e Caetano Beirão, que ainda fora seu mestre. “Gonçalo, parece que ainda o estou a ver nas viagens de carro, quando se irritava”, contou-me. “’Vocês não percebem nada do meu bom e amado Führer.’ Era a frase que Caetano usava – provavelmente mais para nos irritar do que sentida.” Mas, ideologias à parte, também reconhecia que a questão da escrita do Sudoeste ficara a dever muitíssimo às recolhas exaustivas de Caetano Beirão. 

     Terei saudades de Manuel Maia, um arqueólogo apaixonado pelo que fazia, um excelente divulgador de ciência e um tipo divertídissimo.
(as fotografias são do António Cunha, outro amigo de Manuel Maia, a quem peço desculpa pelo abuso)

terça-feira, setembro 07, 2021

Talvez em 2022

 


    Comemora-se hoje mais um aniversário da independência do Brasil e estamos portanto a 365 dias do segundo centenário do país irmão. Talvez seja a altura de debater a possibilidade de Portugal fazer melhor figura do que fez no primeiro centenário. 
    Na verdade, o ano de 1922 até começara bem. A chegada apoteótica de Sacadura Cabral e Gago Coutinho à costa brasileira, em Junho, com sucessivos voos comemorativos entre cidades costeiras marcara uma aproximação cultural entre os dois países. Era o mundo latino que reivindicava destaque na corrida da aviação, uma vez que as grandes proezas aeronáuticas até então tinham sido entre países anglófonos. 
     António José de Almeida, o Presidente da República, foi convidado a comparecer nas cerimónias de 7 de Setembro. A partir daí, correu tudo mal. No Verão, foi declarado estado de sítio e recolher obrigatório – circunstâncias que aconselhariam contenção dos principais órgãos de Estado. A depauperação dos cofres recomendava igualmente uma missão modesta. Debalde. Toda a gente foi. 
     Acompanhando os preparativos da viagem pelas páginas da imprensa da época, constata-se a sucessão de incidentes embaraçosos. Começou com a escolha da missão intelectual que acompanharia o PR. À boa maneira portuguesa, todos os nomes estavam mal escolhidos. O Século ridicularizou o arabista David Lopes. O Dia não queria que o filósofo Leonardo Coimbra chefiasse a missão. Como na canção dos Deolinda, «há trolhas escritores, / Letrados estucadores e serventes poetas / E poetas que são verdadeiros pedreiros das letras.» 
     No Diário de Lisboa, Joaquim Manso ironizou: os ases da pátria são sempre os que ficam cá. 
     Seguiu-se a escolha dos repórteres que deveriam acompanhar a missão. O governo cometera um erro com a viagem dos aviadores, atribuindo a um único jornalista (Paulo Freire) a missão de informar todos os jornais. Fora severamente criticado por isso e agora fora decidido que uma dezena de repórteres poderia subir a bordo, com as despesas pagas. Protestou a imprensa monárquica, tomando a medida como os tiques dos fidalgos arruinados.
     Depois, foi o problema naval. António José de Almeida confiou num velho navio apreendido aos alemães na Grande Guerra (o Porto) e temeu mais críticas de despesismo caso exigisse o regresso do couraçado Vasco da Gama ao continente. O Porto, porém, já não estava em condições. Demorou semanas em reparações. Era bafiento e malcheiroso. Partiu tarde de Lisboa e demorou de mais. Por essa altura, os críticos do regime já não poupavam nas chalaças. O navio era o Enguiço; a missão presidencial era leopárdica
     Assim, no glorioso dia 7 de Setembro de 1922, quando a missão portuguesa já deveria estar no Rio de Janeiro, a Nau Catrineta, como lhe chamou O Dia, ainda estava em Cabo Verde e decidiu comemorar ali, no mar, o centenário, com récita e champanhe. «Chegará trop tard como os clássicos carabineiros de opereta», ironizava Moreira de Almeida. «No segundo centenário, deve chegar a horas…» Chegou ao Brasil no dia 9 de Setembro.
     Só para lembrar, portanto, que há uma imagem a limpar no próximo ano.