quinta-feira, maio 21, 2020

Guardemos a forquilha

Anda aí um charivari por causa da primeira página da Visão e das mensagens que a revista quis (ou não quis) transmitir com a imagem de Ventura num púlpito em pose de pregador superstar.
As imagens mediáticas são, por definição, polissémicas. Prendem-se ao contexto que tentaram reportar, claro, mas são abertas a outras camadas de sentido. 
Atentemos nesta página da Ilustração Portuguesa de 1906 ou 1907 (número 210). Mademoiselle Hélène, duquesa de Aosta e irmã de Dona Amélia, acabou de aviar um hipopótamo e posa orgulhosamente ao lado da presa.
Cingindo-nos ao conteúdo explícito, é uma página rara na imprensa de início de século. Uma senhora, de arma na mão, caça como qualquer homem e domina claramente a cena, encenada para ela e para nós (camada 1) A legenda esclarece que o animal foi «morto por Sua Alteza».
No contexto republicano de oposição da época, a página transforma-se no quadro completo de um privilégio. A fidalga caça no meio da pobreza extrema que a rodeia, símbolo do muito que haveria por fazer nos territórios ultramarinos (camada 2).
Com a distância de um século, choca-nos o que não chocava na época – a mortalidade gratuita de vida selvagem por desporto fútil (a foto de cima é particularmente sinistra) (camada 3) e os indígenas como figurantes e identificados como «os pretos guardando a caça». Mesmo o hipopótamo foi primeiro «perseguido pelos pretos» (camada 4).
E, quem sabe, com os ventos de emancipação, talvez alguém possa ler aqui um primeiro sinal de "empoderamento" das senhoras, na sociedade masculina de então (hashtag "girl power") (camada 5)?
Como na primeira página da Visão, é difícil adivinhar o sentido e a intenção. Se calhar, arrisco, é melhor ler a peça antes de pegar na forquilha!

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