Fotografia de Paulo Henrique Silva |
Fotografia de Alberto Plácido |
Já vinha de trás. No Verão
passado, Jair Bolsonaro desvalorizara como «cocó de índio petrificado» um sítio
arqueológico brasileiro responsável por uma moratória que travava a construção
de um terminal de contentores em Paraná. Quando a extensão da BR-116 em
Pelotas, Rio Grande do Sul, foi travada por esventrar um sítio arqueológico,
Jair puxou de novo do grande livro das metáforas e justificou o obstáculo com a
descoberta de «cocozinho em índio». Agora, com a divulgação da reunião do
Conselho de Ministros do dia 23 de Abril, verifica-se a reincidência. Bolsonaro
considerou o património arqueológico como «cocó petrificado de índio».
Gabe-se-lhe a consistência das afirmações, embora o repertório esteja um bocadinho
gasto.
As afirmações tontas da
principal figura de Estado do Brasil são uma caricatura, coerente com a
capacidade cognitiva da personagem, mas tipificadoras de uma percepção mais
alargada de que nem todo o património cultural (arqueológico, etnográfico,
arquitectónico ou imaterial) vale a pena preservar.
Vem isto a propósito da
Procissão dos Abalos, que hoje deveria ter tido mais uma edição na ilha Terceira, não fossem as restrições impostas pela pandemia. No dia 31 de Maio de 2005, o pároco deu-nos
autorização para acompanharmos todo o processo no âmbito de uma reportagem que
publicámos sobre a capacidade dos açorianos para dormirem tranquilamente
sabendo que, em toda a região autónoma, há vulcões activos. Para mim, ateu
nunca tocado pela graça da fé, foi uma experiência notável. Para o Alberto
Plácido, foi a oportunidade de fotografar uma experiência cultural rara. Para o
vulcanológo Victor Hugo Forjaz, foi o pretexto ideal para gozar das carantonhas
que nós fazíamos sempre que se escutava a ladainha.
Ao contrário de muitas
outras procissões açorianas, a Procissão dos Abalos não celebra uma experiência
mística, nem um culto popular. É uma das mais antigas procissões insulares (há
uma mais antiga no Faial, mas com menor intensidade) criadas após (e devido a)
uma manifestação vulcânica.
Entre 1867 e 1868, o vulcão
submarino da Serreta entrou em actividade para pânico dos terceirenses. Antes
desta, não se conhecia outra manifestação vulcanológica submarina desde o
povoamento – depois, claro, tivemos os Capelinhos em 1957/58 e a Serreta de
novo em 1998.
As casas frágeis tremeram
durante um ano. A igreja abriu fendas. A população temeu pela vida. Na
madrugada do dia 30 de Maio de 1867, espontaneamente, saiu pela primeira vez à
rua uma procissão. Os participantes levaram as coroas do Espírito Santo e seguiram
do cabo do Raminho até à Serreta. No regresso, a terra tremeu onze vezes. De
cada vez que o solo estremecia, os participantes prostravam-se de joelhos e
rezavam virados para o mar. Caminharam quase sete quilómetros. No cabo, foi
rezada missa campal.
Se estavam à espera de uma narrativa mística,
desenganem-se. A procissão não resolveu a catástrofe. Nos dias seguintes,
mantiveram-se os abalos, mas, poucos dias depois da procissão, de facto, surgiu
finalmente a erupção no mar, na ponta da Serreta, daquilo a que hoje chamamos
uma erupção do tipo surtseyiano. O mar agitou-se. A lava brotou. A pesca
tornou-se impossível durante semanas. É curioso que a população tenha caminhado
precisamente para o ponto da ilha onde o vulcão se formava sob a superfície.
Mais importante: graças a esta manifestação etnográfica, conseguimos
cartografar a erupção, reconhecendo os pontos de reavivamento e de acalmia.
O vulcão cumpriu o seu ciclo de vida, avesso às tradições dos
homens. A Procissão dos Abalos, que se
passou a realizar sempre no dia 31 (de madrugada quando calha ao fim-de-semana
ou ao fim da tarde quando o dia 31 coincide com um dia de semana) é uma das
manifestações mais fervorosas do carácter açoriano. Ao observador ocasional
poderá parecer pouco relevante ou mais uma entre muitas. Ao Presidente do
Brasil, certamente pareceria cocó de índio. Mas é, na essência, um dos tijolos
mais firmes do carácter terceirense. Fala-se muito agora em património
imaterial, em tradições enraizadas no código genético de uma cultura. Não
encontrarão melhor exemplo do que a Procissão dos Abalos, iniciada para aplacar
a ira de um vulcão.
Garante-vos este ateu nunca
tocado pela graça da fé.
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