Aviões da Luftwaffe voando em desafio nos céus
de Lisboa?
Nunca tinha lido tal coisa, mas Artur
Agostinho dedica onze páginas ao episódio nas suas memórias, Ficheiros Indiscretos (Oficina do Livro,
2002). Conta o locutor que cumpriu parte do serviço militar obrigatório na
Bateria Anti-Aérea de Murfacém, a dois passos da praia da Trafaria, numa
unidade comandada por Brito Camacho, filho do velho político republicano
homónimo. Foi aqui que presenciou o episódio que narro de seguida.
«Procurarei evocá-lo tão pormenorizadamente
quanto a memória mo permitir», começa por advertir. «A verdade é que já lá vão
uns bons sessenta anos e – como diria o famoso Hercule Poirot – por melhor que
seja o estado em que se encontram as minhas células cinzentas, é perfeitamente natural
que haja uma ou outra pequena falha (ou imprecisão) no decorrer do meu relato.»
A guerra de 1939-45 entrou na fase decisiva.
Portugal mantém a neutralidade possível, mas está a ser pressionado para
autorizar a cedência das bases açorianas à aviação dos Aliados. Se o fizer, o
governo de Lisboa corre o risco de incitar o Eixo a considerar a medida como
uma quebra da neutralidade, incorrendo numa possível retaliação militar. Se não
o fizer, as ilhas podem pura e simplesmente ser invadidas, já que não existe
dispositivo de defesa local que possa contrariar esse desígnio.
Titubeante, após meses de negociação, o
governo autoriza a utilização das bases de Santa Maria e logo depois do campo
de aviação do Faial. E ao mesmo tempo inicia «medidas especiais para a
eventualidade de um ataque da aviação germânica, a começar pela instalação de
um dispositivo de defesa anti-aérea à volta de Lisboa, precedida de uma
campanha de esclarecimento visando a Defesa Civil do Território». Até aqui, não
há dissonância entre as memórias de Artur Agostinho e o conhecimento disponível
sobre a diplomacia em tempo de guerra. Em 1943, é de facto criado o Comando de
Defesa Anti-Aérea de Lisboa. Para quem gosta de curiosidades, o comando adopta
como timbre de armas o morcego, conhecido pelo seu fenomenal dispositivo de
eco-localização de ameaças.
Aliás, desde o Verão de 1942 que há notícias
de exercícios de simulacro de bombardeamento na capital, como o revela uma
reportagem do Mundo Gráfico,
publicada em 30 de Junho de 1942.
Agostinho descreve a «obrigatoriedade de colar
tiras de papel nas vidraças das janelas de todos os edifícios e de proceder à
ocultação de luzes de forma a dificultar qualquer acção de bombardeamento por
parte de aviões inimigos». À noite, com estranhos paralelismos com a situação
actual, Lisboa é uma cidade silenciosa, vazia e escura. Em 1943, teme o inimigo
ruidoso que vem pelos céus; em 2020, teme o inimigo silencioso e microscópico.
As baterias anti-aéreas, segundo este relato,
estão equipadas com tecnologia inglesa , «aparentemente, em condições de entrar
em acção a qualquer momento», diz o futuro locutor da Emissora Nacional. Mas a
todas faltava o regulador de espoletas, «sem o qual não era possível abrir fogo
com a garantia de um mínimo de eficiência». As espoletas dos projécteis «tinham
de ser devidamente reguladas para que o rebentamento se verificasse depois de
percorrida a distância a que se encontrava o alvo, mesmo que não ocorresse o
impacte do projéctil com o avião inimigo».
Só que o fornecedor inglês dos equipamentos
não entregara o instrumento em causa. Ficara «esquecido algures na velha
Albion», diz Agostinho, sugerindo que o “erro” teria sido um seguro de vida do
governo inglês, não fosse dar-se o caso de, um dia, aquelas baterias
anti-aéreas servirem para alvejar a sua própria aviação caso o pêndulo da
guerra oscilasse para Berlim. Como resultado, «as probabilidades de acertar no
alvo seriam praticamente nulas».
Agostinho não está sozinho em Murfacém,
naturalmente. Segundo a revista Stadium
n.º 164, de 1946, também o futebolista Quaresma, velha glória do futebol do
Belenenses, presta serviço na unidade, com um posto equiparado a sargento.
O EPISÓDIO DESCONHECIDO
A novidade do relato surge a partir do momento
em que Artur Agostinho revela o dia em que a unidade foi colocada em regime de
prevenção geral, na véspera do anúncio da decisão governamental de cedência das
bases. «Chovia a cântaros. Pouco depois do toque de recolher, recebemos uma
visita inesperada. Nem mais nem menos do que o então ministro da Guerra,
coronel Santos Costa, que chegou na companhia do capitão Cavaleiro, nosso
comandante e de mais dois oficiais superiores», relata Agostinho. Há certamente
um erro cronológico no relato, pois Santos Costa, em 1943, ainda não é ministro
da Guerra, é subsecretário de Estado.
«Àquela hora, uma visita tão importante
significava, sem d úvida, que algo de muito especial estaria para
acontecer», diz o narrador. O político quer saber o estado de ânimo das tropas.
Algo está prestes a acontecer, embora Santos Costa não deixasse de referir «que
escolhera aquela hora tardia para a sua visita de forma a evitar especulações».
Entredentes, fala-se do receio de uma provocação alemã que suscite uma resposta
militar e, consequentemente, uma declaração de guerra.
«Poucas horas decorridas sobre a visita de
Santos Costa, fomos alertados para a presença de dois aviões alemães no espaço
aéreo português», diz o locutor. «A chuva tornara-se mais intensa – quase
diluviana – quando a guarnição da bateria foi chamada a tomar posições de
combate. Todos perceberam rapidamente que não se tratava de um exercício de
rotina. Dessa vez, a coisa era mesmo… a sério.»
«Os potentes projectores instalados em Porto
Brandão haviam sido accionados e os seus largos feixes de luz eram já bem
visíveis, ainda que a intensidade da chuva e o céu muito nublado tornassem
difícil a localização de qualquer aeronave.»
O Quartel de Queluz, onde está instalado o
Comando, adverte para a necessidade de não abrir fogo. «Poucos segundos depois do
alerta, começou a ouvir-se o ruído de motores de aviões. A princípio,
longínquo. Depois, mais próximo, mais intenso. Logo a seguir, dois dos projectores
de Porto Brandão conseguiram cruzar os seus feixes de luz sobre um deles. (…)
Foi possível identificá-los como bombardeiros da Luftwaffe.»
As aeronaves sobrevoam os céus da capital.
Mostram-se como um rato que zomba do gato. Serão um isco para incitar um tiro
precipitado que permita depois aos alemães alegar que dois aviões perdidos com
o temporal, sem intenções bélicas, teriam sido alvejados.
«Após três ou quatro passagens sobre Lisboa,
os aviões acabaram por se afastar, sempre acompanhados pelos projectores de
Porto Brandão e pelo ‘preditor’ da nossa plataforma de comando, que ia
fornecendo os dados necessários a uma acção de combate, incluindo os números
que deveriam ser marcados nas espoletas dos projécteis pelos… inexistentes
reguladores.»
Encharcados até aos ossos, os membros da
unidade percebem que o perigo passou. Decorreram dez ou quinze minutos do mais
emocionante exercício de quase combate durante a Segunda Guerra Mundial. «Raros
terão sido os lisboetas que se aperceberam de que, naquela noite de tempestade,
a Segunda Guerra Mundial havia estado ali bem perto de nós.»
Um dos homens da bateria de Artur Agostinho
desabafa: «Apanha um gajo uma molha destas e nem sequer lhe deixam dar um tirinho.
Antes o Parque Mayer!…»
2 comentários:
Mexendo com memórias... A minha mãe nasceu em 1930 em Rabo de Peixe, S. Miguel-Açores. Contava-me que ela e as irmãs, - tinha ela 11 anos -, passaram uma tarde a puxar pela criatividade e a recortar folhas de papel vegetal de várias cores com desenhos extremamente elaborados que depois colaram com goma-arábica aos vidros das janelas para eles não ferirem ninguém em caso de bombardeamento e eventual estilhaçar de janelas (feitas de madeira de criptoméria, a propósito). Santana, a menos de 5 Kms de S. Sebastião, local de residência dos meus avós maternos, albergava uma base aérea improvisada pelos britânicos e era um potencial alvo da aviação alemã…
Viva Octávio, boa noite. Belíssima recordação. Tenho ideia de também ter lido, nas memórias da viúva Athayde, alguma informação sobre os preparativos dos micaelenses para os bombardeamentos possíveis. Mas esta sua recordação é muito vívida e interessante. Um abraço
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