terça-feira, março 17, 2020

Leituras pandémicas # 2


«Pouco passava das 16h30. Hanssen caminhou pelo trilho florestal, flanqueado por árvores, até chegar a uma ponte de madeira que atravessava o Wolf Trap Creek, um curso de água estreito que serpenteia através do parque. Para os russos e para Hanssen, a ponte era conhecida como “dead drop ELLIS”. Com cuidado, Hanssen depositou um saco por baixo da ponte, longe dos olhares de eventuais caminhantes. Demorou cerca de quatro minutos a emergir da floresta e a regressar ao seu carro. Naquele momento, ele percebeu. Os homens que corriam na sua direcção estavam armados com metralhadoras.» Os seus 23 anos de espionagem estavam quase a terminar.
Em Nova Iorque, há um museu chamado Spyscape. Ao contrário do Museu Internacional da Espionagem de Washington ou do Museu Alemão da Espionagem em Berlim, este espaço celebra sobretudo as histórias dos homens que espiaram contra o Ocidente, as toupeiras que penetraram com sucesso nas principais agências de segurança norte-americanas e inglesas. Alguns, como Philby, Burgess ou McLean, fizeram-no por convicção. Outros, como Aldrich Ames, fizeram-no por dinheiro. E há, pontualmente, casos especiais, cuja motivação nunca foi genuinamente apurada. Nesse grupo restrito, não há ninguém como Robert Hanssen.
Em Spy: The Inside Story of How the FBI’s Robert Hanssen Betrayed America (Random House, 2002), David Wise explora o extraordinário percurso do homem que foi ascendendo na hierarquia do FBI, ao mesmo tempo que vendia segredos aos russos. Conseguiu esconder a sua identidade e desmascarou agentes americanos na Rússia – em pelo menos três casos, as suas denúncias conduziram à execução de agentes duplos americanos.
Em Moscovo, sabiam que «Ramon Garcia» tinha de estar bem posicionado, mas não o conheciam. Hanssen deixava a documentação roubada em sacos de lixo, por baixo dos painéis que assinalam a entrada de um parque natural de Virgínia. Ali também recolhia o dinheiro que selava o negócio. Durante 21 anos, Hanssen espiou, indiferente à mudança de regime na URSS. Chegou a ser encarregado, por uma comissão de inquérito, do grupo que se propunha identificar a “toupeira” nos serviços americanos. Hanssen estava, naquele momento, encarregado de se identificar… a si próprio.
Jornalista veterano do The New York Time, David Wise relata a ascensão e consolidação deste homem temente a Deus, membro da Opus Dei nos Estados Unidos e conhecido pelos colegas pelo seu fervoroso anti-comunismo. Em privado, porém, Hanssen seguia outras estrelas e outros deuses.
Note-se, por fim, que a narrativa tem uma passagem exótica por Portugal. Da mesma forma que Robert Hanssen cometeu certa vez o erro de abordar directamente um agente russo num parque de estacionamento, à maneira de Deep Throat, dizendo-lhe estar pronto para colaborar com mais regularidade, Wise dá conta de que o mesmo sucedera certa vez na embaixada soviética em Lisboa. Um potencial informador entrou no edifício, exibiu a sua credencial da CIA e terá anunciado a sua disposição para espiar a favor da URSS, mas os serviços russos declinaram a oportunidade, considerando-a demasiado óbvia.
Hanssen, que traíra tantos agentes duplos, foi traído por um agente russo que vendeu ao FBI todos os ficheiros de Moscovo sobre o enigmático «Ramon Garcia». Durante três anos, começou uma silenciosa caça ao homem que viria a culminar na detenção de Hanssen, em Fevereiro de 2001, perto da ponte de madeira de Foxstone Park. O espião está desde então numa prisão de alta segurança, condenado a prisão perpétua.

Sem comentários: