Há sectores financiados pelo Estado que não têm outra razão de existência para além do seu valor simbólico. A dotação orçamental para a gestão das áreas protegidas é um bom exemplo. Contrariamente às visões absurdas que por aí se escutam, uma área protegida estatal (parques naturais, reservas, zonas de protecção especial e por aí fora…) não tem de gerar receitas, nem tem de produzir mais-valias tangíveis. Não tem também de se submeter ao escrutínio do ministro que a tutela e que nela muitas vezes identifica apenas dinheiro esbanjado.
Uma área protegida é um apoio simbólico. É financiada com o único fim de a salvaguardar intacta, graças aos técnicos e investigadores que a gerem. Numa área protegida, os valores naturais estão acima de todos os outros.
O apoio estatal a uma área classificada demonstra acima de tudo que o Estado aprova aquele pedaço de terreno ou de mar. Considera-o suficientemente importante para a sobrevivência de uma ou mais espécies, de um ou mais ecossistemas, de uma ou mais formações geológicas. Contrariamente à tradicional e obtusa visão autárquica, as áreas protegidas não são empecilhos jurídicos, aplicados a martelo, para proteger meia dúzia de lírios e malmequeres. Repito, para que não restem dúvidas: o Estado financia a rede de áreas protegidas pura e simplesmente para que elas se mantenham incólumes. A sua unicidade é protegida da invasão urbana, dos interesses especulativos, dos visitantes incautos e mesmo das práticas nocivas de populações residentes (quantas vezes desculpadas com o estafado argumento de que elas têm na base hábitos seculares) por este estatuto extraordinário, que foi aceite pela nossa legislação e integrado na Constituição.
Uma área protegida é, se quiserem, o dote que o governo entrega ao seu sucessor, quando lhe cede a mão da noiva no final de cada mandato parlamentar.
Há um velho filme de Charlie Chaplin que relata o quotidiano de uma família miserável que, no auge da Grande Depressão, sem dinheiro para sobreviver, acaba um dia por se sentar à mesa de refeições com uma bota de couro dentro da panela! O jantar está servido: bota de couro para todos!
À escala, este é o lamentável estado a que se chegou nas áreas protegidas portuguesas: faltam verbas para tudo. Não há telefones, não há verba para limpeza, nem para manutenção dos veículos indispensáveis à vigilância. Não há também contratações de novos profissionais: estão congeladas desde o início do tristemente célebre discurso do "Portugal está de tanga!"
O processo, em si, não é novo. Cronicamente, os parques naturais têm tido que apertar o cinto e terminar cada ano civil a contar tostões. Mas o grau de carência vivido este ano é terrível e inédito. Como na metáfora de Chaplin, há botas de couro para o jantar de cada área protegida portuguesa.
Nas próximas semanas, discutir-se-á o orçamento de Estado para 2005. Do Minho ao Algarve, os gestores de áreas protegidas com quem falo estão genuinamente preocupados. Preocupa-os que, na onda poupadora presente, o ministro que tutela o sector não saiba ou não possa defender, no mínimo, a dotação da mesma verba de 2004; preocupa-os que a visão excessivamente economicista do governo os obrigue a incorporar missões absurdas na administração – estão na moda os vocábulos odiados "criar riqueza", "potenciar mais-valias", "ginasticar orçamentos", "viabilizar turismo ecológico em massa". Preocupa-os por fim que quando não há dinheiro para pagar telefones ou luz, o futuro seja sombrio.
Mais do que nunca, importa por isso frisar que as áreas protegidas existem per se. Numa sociedade moderna, representam o nosso presente à natureza (a designação de "Gift to Earth" do World Wildlife Fund é apropriada), os pedaços do nosso território terrestre e aquático que não têm preço e cujo valor simbólico supera o valor económico.
Que esta perspectiva não se perca por um momento da óptica do ministro do Ambiente. Sob risco de ele passar à história como o primeiro responsável de uma tutela que foi forçada a abolir estatutos de protecção de áreas naturais, depois de as deixar sem luz, sem telefone, sem água. Sem nada.
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