Trata-se de um artigo, publicado no n.º 64 da revista, de Outubro de 1910 (precisamente o mês da implantação da República) e dedicado à Gorongosa em Moçambique. Partilho aqui algumas conclusões de uma leitura crítica sobre este artigo.
(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
A GORONGOSA
A região, hoje classificada como Parque Nacional e alvo de um intenso e apaixonante trabalho de recuperação na última década e meia, começou por ser, nos últimos anos do século XIX, uma zona de caça "informalmente administrada" pela Companhia de Moçambique. Em 1910, à data do artigo, era visitada com regularidade por caçadores anglófonos (ingleses, sul-africanos e americanos), interessados em testar a sua perícia na caça a algumas das espécies mais emblemáticas de mamíferos africanos.
A partir de 1920, a Gorongosa tornar-se-ia formalmente uma Reserva de Caça e assim permaneceu até 1960, ano em que a administração colonial a classificou como Parque Nacional. Fortemente afectada pela guerra civil, que praticamente aniquilou os grandes mamíferos do Parque, a área protegida tem vindo a ser reconstruída pelo governo moçambicano e pela Fundação Greg Carr, mostrando sinais entusiasmantes de recuperação de habitats e efectivos populacionais, aliados a um movimento de integração das aldeias locais na gestão e protecção do parque. A caça é hoje interdita no Parque Nacional da Gorongosa.
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O ARTIGO
O texto da revista "Serões" é assinado por Gustavo Bívar Pinto Lopes, um dos administradores da Companhia, radicado na Beira há dez anos. O tom não deixa espaço para dúvidas: é um convite à caça. Ao longo das seis páginas, descrevem-se as espécies disponíveis, num dos inventários faunísticos mais completos da primeira metade do século XX para esta região. O texto comenta as facilidades logísticas da região, sublinhando a sua proximidade da costa e do porto da Beira, a elevada concentração faunística e diversidade de troféus de caça disponíveis e a vantagem do acesso privilegiado a grandes concentrações de animais sem ter de percorrer centenas de quilómetros. Subjacente a todo o artigo, está uma perspectiva turística, uma comparação da oferta da Gorongosa face a destinos semelhantes no Quénia, na África do Sul e na Tanzânia.
Bívar apela ao leitor português, "bastante rico para poder gastar as centenas de mil reis precisas" e que possa "dispor dos três ou quatro meses indispensáveis" para caçar. É certo que não seriam muitos no Portugal da viragem do século, pois Bívar termina o texto referindo que, em dez anos de trabalho na Gorongosa, ouviu um único visitante falar português e esse era D. Pedro, o príncipe imperial do Brasil.
No entanto, o texto — publicado numa revista conhecida pelas suas ilustrações e fotografias vistosas e que circulava junto das classes abastadas de Lisboa e Porto – apelava ao aventureirismo fidalgo, seguramente cansado das batidas às lebres e perdizes do território continental e interessado na adrenalina da caça grossa.
Que eu saiba, as fotografias aqui publicadas constituem as mais antigas imagens conhecidas da Gorongosa.
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O CONTEXTO DA ÉPOCA
Socorro-me do extraordinário estudo do norte-americano Gregg Mitman ("Reel Nature", 1999, University of Washington Press) para documentar o importante momento de transição em que este artigo se insere, no quadro da evolução de valores, do desenvolvimento científico e tecnológico e da relação das culturas ocidentais com a vida selvagem. Mitman estudou os filmes de natureza, mas as suas conclusões são suficientemente abrangentes para abarcar também o texto e a fotografia.
Na transição do século XIX para o século XX, o espaço natural deixa de ser imaginado como vazio e inútil. Na paisagem inóspita, o homem oitocentista via o território a explorar e a desbravar, numa incessante aposta na humanização de toda a paisagem, que só ganha valor quando é transformada numa fonte de receita. A conquista do Velho Oeste americano é o melhor paradigma dessa imparável transformação do espaço natural, que urge civilizar, dotar de tecnologia ou explorar comercialmente.
Aos poucos, na viragem do século, o espaço natural vai sendo construído com outros valores. Ele é louvado pelo que é, não pelo que pode vir a tornar-se. A criação dos primeiros parques naturais nos Estados Unidos – frequentemente citada como a melhor ideia legada pelos EUA ao mundo – é o momento decisivo nessa nova perspectiva, refinando o gosto pela paisagem e atribuindo uma dimensão diferente ao acto da exploração. Explora-se agora o território bravio, não para o transformar, mas para mostrar que ele também é vencido pela abnegação humana. A caça grossa e a busca de novos e imponentes troféus inserem-se nesta modificação ideológica.
Pode até ser argumentado que o culto naturalista pelos grandes espaços abertos, naturais, de paisagens e fauna exótica até perder de vista dá aqui os primeiros passos num movimento que gerará, nas décadas seguintes do século XX, o ambientalismo e o seu ênfase na recuperação de espaços naturais perdidos e espécies devastadas.
Mitman coloca o filme de 1909 sobre as campanhas venatórias de Theodore Roosevelt como marco fundamental desta transição. O ex-presidente norte-americano organizou então uma expedição à África Oriental e teve o cuidado de se deslocar com operadores de câmera, que registavam para o público urbano, sedento de emoções, um novo compromisso com o espaço bravio. Esses filmes pioneiros tentavam mostrar uma experiência da natureza incólume, "o bálsamo terapêutico para curar os efeitos debilitantes da vida urbana", o derradeiro local de elegância, graça e autenticidade, muitas vezes construído como lugar onde ainda se notava o dedo de Deus.
(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
A NATUREZA COMPLEXA DA CAÇA
Nessa evolução conceptual do espaço natural, a caça nunca deixou de ser fundamental. Roosevelt foi um naturalista amador, um conservacionista inveterado (no seu mandato presidencial, classificou 53 refúgios de vida selvagem, parques, monumentos nacionais e reservas florestais), mas foi igualmente um caçador imparável. A sua campanha africana terá chacinado uma média de 40 animais por dia, numa quimera desenfreada para dotar os museus americanos de espécimes para as suas colecções. A sua espingarda abateu seis raros rinocerontes-brancos, entre muitas outras espécies. O público, porém, via-o em película, de câmera – e não de espingarda – na mão.
Uma discussão filosófica atravessava nesta época o mundo da caça nos países anglófonos. Homens como Roosevelt esforçavam-se por cunhar normas regulamentares para a caça desportiva, apoiando legislação restritiva face a algumas espécies ou em períodos essenciais da ecologia de alguns animais e impondo códigos de conduta "nobre" no acto da caça. A sua acção procurava separar-se da caça-chacina, que massacrava animais pelo lucro, dessacralizando a natureza e transformando-a em mais uma extensão da actividade comercial.
É nesse esforço identitário que o artigo de Bívar Lopes se insere, em 1910. Na ideologia da caça como desporto, a modernidade amolecera moral e fisicamente os homens das classes abastadas urbanas. Era na dureza do campo, do espaço bravio, do confronto físico com ursos-polares no Árctico, leões em África ou tigres na Índia que homens como Roosevelt sonhavam recuperar as virtudes revigorantes dos pioneiros. A caça em locais como a Gorongosa foi construída assim como uma missão espiritual ou, como Aldo Leopold escreveu, o espaço selvagem foi o material em bruto a partir do qual o homem fabricou o artefacto a que chamámos civilização.
Feita com balas ou, mais tarde, com fotografia e filme, a revisita do espaço bravio foi essencial para modificar a consciência urbana sobre o território natural, construindo uma ideologia ficcional – mas eficaz – na qual se conjugaram a necessidade de conservação da natureza com a prova moral associada ao confronto com "os animais ferozes" de que fala Bívar.
Repare na legenda que acompanha a fotografia da página 271. O caçador, orgulhoso, descansa a espingarda, enquanto a seus pés jaz um leão abatido. A legenda resume a cena: "Vencedor e vencido."
(reproduzido a partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
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Adenda: diz-me o Vasco Galante (PN Gorongosa) que, pelo menos na obra de Frederick Findlay, "Big Game Shooting and Travel in South-East Africa", datada de 1903, há fotografias mais antigas da Gorongosa. Fica feita a correcção.
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