domingo, outubro 28, 2012

Quando os lobos uivam


Quando somos crianças (ou quando um político está na oposição, o que, vendo bem as coisas, é quase o mesmo), tudo parece mais fácil. As soluções são pretas ou brancas, sem meios termos, compromissos ou tons intermédios. Há bons e maus, heróis e inimigos, certo e errado.
A conservação da natureza é um desses campos. Numa sala de conferências, parece evidente que não pode haver futuro sustentável se a actividade humana colidir com a vida selvagem, pelo que os decisores assumem a responsabilidade de, em situação de choque, compensar populações humanas afectadas por consequências indesejadas, mas inevitáveis, provocadas pelo instinto animal. É essa a ideia, por exemplo, do velho programa de indemnização dos proprietários de cabeças de gado abatidas por lobos: desde 1990, instituiu-se que um proprietário de gado ovino, bovino ou caprino deve denunciar ataques que os seus rebanhos venham a sofrer por parte de alcateias, sendo por isso indemnizado em função das suas perdas. A medida visa desencorajar os actos justiceiros dos lesados que, durante tempos imemoriais, faziam justiça por suas mãos e abatiam lobos em resposta a estes ataques.
Como tudo em Portugal, também a lei mostrou debilidades. Para uma população estimada em 300 animais nas nossas fronteiras, o ICNF (enquanto divulgou publicamente dados) dava conta de uma média de 2.700 ataques reportados por ano. Por outras palavras, ou os proprietários abusavam da lei e viam nela uma oportunidade de obter indemnizações ou, para além dos lobos, também os cães assilvestrados faziam danos consideráveis e, nesse caso, entende o legislador que não cabe ao Estado compensar o pastor. Um projecto recente de distribuição de cães de gado a mais de 800 pastores em Montesinho contribuiu para diminuir o número de pedidos de indemnização (e, espera-se, de ataques), mas o pagamento das verbas compensatórias foi sempre lento e controverso.
O tema voltou à agenda com a recente notícia dos ataques de alcateias (ou não) a rebanhos na zona de São Pedro do Sul. A peça da SIC Notícias (disponível por enquanto neste endereço) é um esforço pobre de transferência do assunto da esfera local, onde ele causa natural consternação, para a esfera pública e nacional, onde ele deve ser ponderado, sem cedências ao populismo e ao discurso dominante sobre o legislador que tudo erra.
Para que nos entendamos: não fica claro pela notícia se os ataques são efectivamente produzidos por lobos; não fica claro se os proprietários se queixam, ou não, às autoridades; não fica claro se os “lobos” deixam, ou não, carcaças dos animais que abatem. Mais: é indecente a apreciação sem contraditório ao esforço de repovoamento de lobos na zona da serra de São Macário. Em nenhum momento, o repórter sentiu necessidade de escutar um biólogo ou outro especialista em vida selvagem, que pudesse fornecer uma interpretação alternativa ao acontecimento. Ouviu apenas os proprietários e o presidente da câmara municipal, que fez uso do velho silogismo político tornado célebre por Jim Hacker, o ministro fantoche de “Yes, Minister”: é a vontade do povo, eu sou o seu líder, logo, eu devo... segui-lo!
Todavia, não escreveria estas linhas se não tivesse visto os últimos segundos da peça noticiosa. Ali se apresenta o “Mata-Lobos” e se escuta, com um certo encanto, a história de batidas aos lobos do passado, quando se podia resolver o problema sem esse aborrecimento que é o estatuto de espécie protegida, que só serve para “nos deixar de pés e mãos atadas”.
Peço a atenção do leitor para alguns recortes que coleccionei ao longo dos anos. Foram extraídos da imprensa portuguesa dos últimos cento e dez anos. Documentam, sem exagero, os mesmos sentimentos de barbárie, de despeito pelo atrevimento do lobo que caça rebanhos, de justiça por conta própria, enraizados na cultura portuguesa. Casos como o de São Pedro de Sul dão conta de que, riscando a superfície, a camada de civilização esbate-se. E estão lá os mesmos sentimentos de sempre.
Revista Brasil-Portugal, n.º 70, 1902
(reprodução a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

Ilustração Portuguesa, n.º 149, 1908
(reprodução a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)
"Diário de Lisboa", Março de 1963
(reprodução a partir de arquivo da Fundação Mário Soares)

Diário de Lisboa", Março de 1963
(reprodução a partir de arquivo da Fundação Mário Soares)

1 comentário:

Anónimo disse...

Concordo com o seu post.