«Tempos há para usar de coruja.
E outros há para usar de falcão" - D. João II
A Conferência das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas estava programada há largos meses. Era a data mais importante do calendário internacional de política ambiental. Mais de sete dezenas de ministros do Ambiente encontraram tempo nas suas agendas e deslocaram-se a Buenos Aires (Argentina) para debater o problema e encontrar respostas globais, vinculativas e suprapartidárias. Portugal, infelizmente, renunciou à última hora.
Naturalmente, a primeira semana, dedicada à apresentação de projectos e de diagnósticos locais e aberta à participação de organizações não governamentais, foi concorrida e contou com representantes portugueses. A delegação nacional oficiosa interveio e mostrou trabalho, como aliás tem sucedido regularmente. Mas o prato forte do menu era o segmento ministerial que hoje começou e que se prolongará até sexta-feira. A presença ministerial portuguesa permitiria impor o tema nos jornais, rádios e televisões. Motivaria discussões e debates. Levaria ao conhecimento dos números oficiais e a eventuais correcções de previsões oficiosas. De vez em quando faz bem ao país discutir um pouco mais do que os golos anulados, as vedetas da Quinta das Celebridades e a passerelle do tribunal de Monsanto. Debalde. Sem os pesos-pesados governamentais em Buenos Aires, o tema será agora, estou certo, varrido para a obscuridade nos media nacionais.
Permitam-me alguma malícia: a ausência do ministro e/ou do secretário de Estado dever-se-á à recente demissão governamental ou terá ela sido um pretexto bem-vindo para evitar a participação num forum potencialmente inflamado e perigoso para o governo português? No fim de semana, a Quercus provocou o Ministério e lançou uma acusação muito concreta: Portugal já atingiu mais 50% de emissões de gases com efeito de estufa do que o valor registado em 1990 (o ano-charneira utilizado no Protocolo de Quioto para estipular crescimentos máximos de 27% até 2012). Desconheço o rigor da previsão, mas sei que ela não está alinhada com os números que a delegação oficial (agora dirigida pelo presidente do Instituto do Ambiente) vai mostrar em Buenos Aires.
Repito por isso a pergunta: esta demissão, tão pateta como inútil, do governo da nação foi um motivo ou foi um pretexto para a ausência de Nobre Guedes e Moreira da Silva? Leio os fundamentos que passam a reger o governo de gestão e não compreendo: o governo de gestão deve assegurar a manutenção dos compromissos entretanto assumidos. Deve por isso participar em reuniões de trabalho, que permitam traçar diagnósticos futuros e compatíveis com o trabalho realizado nos países vizinhos.
Ninguém pedia à delegação portuguesa que anunciasse em Buenos Aires a extensão do plano nacional de combate às alterações climáticas. Pedia-se, sim, a apresentação da posição portuguesa, das limitações e das conquistas entretanto vividas, uma vez que estamos sensivelmente a meio do prazo concedido pelo Protocolo. Pedia-se o alinhamento das restrições às emissões industriais com as normas europeias. Pedia-se a ampliação do quadro de incentivos às energias renováveis. E pedia-se o início, sempre adiado, da cooperação com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa no âmbito das alterações climáticas - uma responsabilidade social que deve ser abraçada pelos próximos governos e que poderia ter sido abordada informalmente no quadro desta conferência sectorial.
Infelizmente, a leitura política foi outra. Nem coruja, nem falcão: os tempos que se seguirão (até às eleições de 20 de Fevereiro, certamente) serão marcados pelo comportamento pouco digno da hiena. É pena!
4 comentários:
Jornalismo e activismo: a confusão do costume
Só um pequeno comentário em relação à Quercus: qualquer pessoa que tenha conhecimento de como funciona uma organização não-governamental sabe que a acção mediática vem em complemento da acção de lobby junto dos governos.
Qualquer pessoa sabe que, antes de qualquer Conselho Europeu, antes de qualquer fórum onde venha a ser decidida legislação, os gabinetes dos governos são inundados por cartas, e-mails, telefonemas, sensibilizando os decisores políticos para que votem no sentido que as ONGs considerem mais correctos.
Apresentam argumentos estruturados, levantam pontos sensíveis, discutem legislação linha a linha e sugerem mesmo linhas de actuação políticas, chave na mão, para uso dos políticos. É assim, e as ONGs internacionais fazem-no muito regularmente junto dos governantes portugueses. Ao mesmo tempo, fazem acções junto da imprensa, para dar mais força aos meritórios esforços em privado. Caso contrário, a imprensa serve só para alimentar egos e carreiras – políticas ou outras.
Que se saiba, nunca a Quercus fez a parte dos esforços privados, sem holofotes nem protagonismo. Nunca fez a parte realmente efectiva, que exige eficiência, estudo, trabalho aturado em defesa de uma causa em que se acredita.
E uma pergunta, legítima - Francisco Ferreira, da Quercus, não foi consultor da cimenteira da Arrábida? Tê-lo-ia sido se não fosse o protagonismo que ganhou, em troca de trabalho suado numa luta em prol de causas?
Venâncio
Cooperação
O início "sempre adiado", da cooperação com a Comunidade de Países de Língua Portuguesa no âmbito das alterações climáticas está previsto no Orçamento de Estado deste ano, no orçamento do Instituto do Ambiente. Está lá para quem se quer dar ao trabalho de ver.
De facto, vinha sempre a ser adiado até agora. Convém dar o seu a seu dono. E foi antes da gestão.
É sempre proveitoso ver um “post” tão debatido, com reacções calorosas – mesmo que contestatárias.
As várias intervenções suscitam-me alguns comentários. Tentarei responder ao que posso e devo. Outras acusações, mais avulsas, a mim e a outros, ficarão sem resposta.
1) Concordo com a ideia de que a acção de qualquer ONG que vise interferir com o processo de mudança social terá forçosamente de se jogar em várias arenas – a arena mediática, a arena política e a arena científica. O leitor identificado com o nome Venâncio argumenta que a Quercus se preocupa em demasia (ou em exclusivo) com a intervenção na produção noticiosa, pelo que o seu único mérito se traduziria em exposição mediática e não em intervenção política. Diz mesmo que a “Quercus nunca fez parte dos esforços privados, sem holofotes nem protagonismo”, pelo que seria uma ONGA artificial.
Não sou advogado de defesa da Quercus, nem estou mandatado para tal. Parece-me, porém, uma generalização injusta para uma ONGA que abrange grupos de trabalho capazes de discutir, “sem holofotes nem protagonismo”, questões específicas da gestão ambiental. Chamo a atenção para o Centro de Informação de Resíduos ou para as intervenções sobre poluição atmosférica, duas áreas exemplares, onde a associação conta com peritos reconhecidos, assina protocolos com entidades públicas e privadas e actua como consultora ou… vigilante. Parece-me por isso redutora a redução da Quercus a mero parceiro unidimensional, que só existe nos e para os media.
2) Um segundo leitor colocou um “post” anónimo (que vício! Basta assinar a prosa no fim! Não paga mais por isso!) sobre a cooperação com a CPLP. Não discuto nem rebato os méritos da iniciativa, nem o facto de ter sido, pela primeira vez, discriminada em orçamento. Era uma velha aspiração, que recebeu entretanto o empurrão político definitivo. Sei também que é (era) uma das apostas do Ministério do Ambiente nesta legislatura.
O seu a seu dono, com certeza.
Admito além disso que a conferência não era a única (ou sequer a mais importante) oportunidade de acertar agulhas com a CPLP. Mas com o governo de gestão parado, assegurando apenas a hibernação indispensável, nunca saberemos como se processariam as reuniões de trabalho, que metas seriam estabelecidas e que parceiros seriam chamados a participar. É mais confortável argumentar agora que a cooperação com a CPLP seria o passo ideal para transmitir planos de acção contra as alterações climáticas ao universo da lusofonia. Nunca poderemos escrutinar o verdadeiro alcance desta cooperação.
3) Agradeço as palavras de encorajamento de Hugo Garcia. Volte mais vezes.
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