CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
terça-feira, abril 30, 2013
quarta-feira, abril 17, 2013
Oito dias na vida do jornalista vagabundo
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"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Seriam pouco
mais de nove horas desta noite fria e chuvosa de Inverno, quando Joaquim Vadio
interiorizou a sua nova situação. Nesta semana de Março de 1930, Joaquim não
tinha trabalho, abrigo, dinheiro ou comida. O mulato, mais um numa Lisboa com
gente de todos os cantos do império, vagueava por São Paulo, na zona baixa de
Lisboa, sem um propósito firme – mais um vagabundo miserável numa Lisboa de
vasta miséria, entre ilhas de luxo e glamour que se divertiam com as vitórias
no rugby e as festas elegantes, celebradas nas colunas de mundanidades dos
jornais.
Largando a
protecção do portal da Igreja de São Paulo, Joaquim enfrentou o frio,
encolhido, de mãos nos bolsos, com o estômago colado pela fome. Protegido por
uma boina coçada e uma camisa de ganga que resistira a muitos invernos,
procurava um rosto conhecido, sem se atrever a pedir esmola. “Cosido com a
parede”, foi avançando como um autómato até o som de notas musicais e
gargalhadas alegres o despertarem. Espreitou pela janela de um cabaret e observou os clientes, felizes, saciados,
reconfortados. “Num súbito rancor de homem que se sentia desapossado dos
direitos à ventura”, odiou instantaneamente toda aquela gente que se divertia,
alheia à miséria, indiferente a quem ainda não tinha jantado, nem sabia se,
naquela noite fria, teria abrigo que “não fosse um portal ou um vão de escada”.
No entanto,
Joaquim Vadio não era um vagabundo qualquer, nem estava propriamente à mercê do
destino e “dos primeiros latidos da fome”, como reclamava. Joaquim Vadio era um
repórter são-tomense e estava em missão. Chamava-se Mário Domingues (1899-1977)
e trabalhava para o “Notícias Ilustrado”, a revista de domingo do “Diário de
Notícias”. Aos 30 anos, Domingues tinha a tarimba de um veterano. Culto como
poucos, poliglota (aprendera francês com Marcel Meunier, famoso correspondente
do “Matin” em Lisboa e debicava inglês e alemão por influência dos marinheiros
que aportavam ao Café Royal), com espírito de aventura aprimorado na parceria
inesquecível formada com Reinaldo Ferreira (o famoso repórter X de que falarei
noutro dia), personificava um novo género jornalístico emergente nas
publicações portuguesas – a reportagem participante. E este trabalho seria a
sua coroa de glória.
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"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
PROJECTO SOCIAL
DOS JORNAIS
A miséria urbana
era há muito objecto de notícias nos jornais e revistas portugueses. Desde o
início do século XX que a imprensa republicana denunciava ardentemente as
condições desumanas em que se vivia em Lisboa e no Porto, incitando ao combate
ao desemprego e à doença. A implantação da República tardou em modificar estes
quadros de miséria humana, que chocavam os visitantes e envergonhavam os
locais. Nas duas primeiras décadas do século, as páginas dos periódicos
reflectiam o problema social, olhando-o do exterior, analisando-o,
dissecando-o, propondo causas e invectivando responsáveis, mas sem ousar passar
a fronteira da experiência directa. Espreitamos páginas da “Ilustração
Portuguesa”, revista semanal de “O Século”, sobre as comunidades urbanas e
pressentimos o desconforto de quem olha à distância, sentimento seguramente
partilhado pelos leitores que folheariam apressadamente a publicação ainda
elitista, suspirando por um mundo melhor.
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Miséria na Póvoa do Varzim, "Ilustração Portuguesa", 194, 1909
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
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O projecto de
Mário Domingues deverá ter começado em 1918, com uma farsa (entre tantas outras)
de Reinaldo Ferreira para o efémero jornal “A Manhã”. O jornalista vestiu-se
então de mendigo, foi fotografado a rigor, enganando durante a sessão alguns
transeuntes, que lhe deixaram esmolas. Reinaldo era entusiasta, mas não se
detinha no rigor factual (dizia-se, a certo ponto, que o R de Reinaldo valia
por “Realidade” e o F de Ferreira por “Fictícia”). Isolou-se durante três dias
e escreveu uma crónica pungente sobre a sua aventura como mendigo nas ruas da
cidade pobre, num texto tão expressivo e cativante como falso. Na verdade, o
futuro repórter X inventara praticamente toda a aventura, mas a sua reportagem
foi discutida nos principais fóruns da cidade. É provável que a semente da
ideia tenha perdurado no cérebro do amigo Mário Domingues, incitando-o a tentar
um projecto semelhante, mas jornalístico.
Domingues viria
a encontrar no cineasta e jornalista José Leitão de Barros o interlocutor
perfeito. Leitão de Barros dirigia então a revista do “Diário de Notícias”, à
qual imprimira um sentido estético e dramático muito diferente das publicações
concorrentes (é incomparável o seu investimento em fotografia, textos curtos e
dramáticos com, por exemplo, o “Domingo Ilustrado”, ainda dependente de
gravuras e fotos em pose). Neste ano de 1930, Leitão de Barros estreara o filme
“Lisboa”, num registo terno e romântico sobre as figuras de Lisboa (que “não
pretendia ser um documentário, mas sim uma crónica de aspectos particulares”,
garantia o autor numa carta ao “Diário de Lisboa” de 10 de Abril). Mas o cineasta
sabia que, para lá dos quadros típicos e estereotipados das varinas e das
aguadeiras, havia outra Lisboa. E que essa Lisboa, se bem representada, poderia
vender revistas, mesmo que fosse igualmente uma reconstituição artificial e
ideológica.
EM MISSÃO
Mário Domingues
passou oito dias sem retirar a máscara de vagabundo. Foi reconhecido uma vez no
porto de Lisboa por um amigo que, enternecido, se ofereceu para o ajudar a
endireitar a vida. Do ódio inicial face aos que se divertiam, a sua percepção
foi evoluindo para uma aceitação gradual do statu quo. Frequentou bares e tabernas. Relatou, com traços
realistas, a generosidade desinteressada dos lisboetas, mas também o alheamento
de quem passava por ele nas ruas e parecia não o ver. Conheceu ingleses e
galegos, coristas e taberneiros. Recebeu propostas de emprego e ofertas
desonestas. Foi aliciado com ofertas de emigração para o Brasil e para a
América, que ponderou, mas recusou em nome da sua paixão pela cidade.
Domingues
resistiu também à tentação de enquadrar o seu registo num quadro sobre o
racismo na cidade. As suas referências a africanos em dificuldades foram
cautelosas e não generalizaram o estereótipo. Aliás, todo o registo de
aventuras e desventuras obedeceu a um guião, expresso no último parágrafo da terceira
crónica, publicada no número 96, no final de Abril: “(…) esta Lisboa pobre,
pacata, mas que sabe, apesar de tudo, dispensar melhor do que as grandes
capitais do mundo alguns carinhos aos párias, aos que não possuem pão, nem
trabalho, nem abrigo”.
A miséria da
cidade, abrigada em barracas ou nas furnas de Monsanto, doente, faminta e
sobretudo dependente da caridade alheia, foi, de alguma forma, um objecto
distante na reportagem de Mário Domingues. Ela existe, mas não é reversível,
nem dissecada ao pormenor. No enquadramento que domina todo o texto,
adivinha-se a mensagem fundamental: a solução reside na entreajuda e nos golpes
de acaso, que podem mudar o destino, porque nada mais o fará, antecipando em
mais de uma década Tennessee Williams e a sua Blanche, vivendo sob a máxima
de que se pode sempre depender da bondade de um estranho.
Recebido o texto
e dividido por três edições, publicadas entre Março e Abril, Leitão de
Barros... retocou um pouco mais a realidade, aplicando-lhe preceitos
comerciais.
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"Notícias Ilustrado", 23 de Março de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Na manchete do primeiro tomo, escreveu despudoradamente: “Nas Furnas de Monsanto! À Gandaia! I Sensacional Reportagem do Jornalista Vagabundo Mário Domingues, que passou oito dias e oito noites nos locais miseráveis de Lisboa, vivendo de esmolas e de roubos!” Em nenhum momento do texto, Domingues reconhecera ter roubado ou sequer infringido a lei, e as furnas de Lisboa praticamente não eram mencionadas. Na abertura do texto, introduziu-lhe a moral que faltava: “Para que saibam os da vida folgada e liberta, com abrigo certo, quanto é dura a existência dos que, nas grandes cidades, arrastam frios e fomes na luta pelo pão de cada dia.”
UMA CARREIRA
PROMISSORA
Sabe-se pouco
sobre a aceitação destes três textos entre os pares do jornalismo português. A
cumplicidade de Mário Domingues com Reinaldo Ferreira ou o registo de
envolvimento participante poderão ter prejudicado a credibilidade do seu relato
aos olhos dos companheiros de profissão mais tradicionalistas. A revista só
voltou ao tema mais uma vez, semanas mais tarde, ao reproduzir uma estranha
auto-entrevista de Mário Domingues a Joaquim Vadio, com ilustrações de Stuart
Carvalhais, ao longo da qual o jornalista anunciava a sua desistência do mundo
burguês e a sua adesão ao estilo de vida nómada dos “marginais de Lisboa”. Nos
jornais contemporâneos, em contrapartida, não encontrei referências à proeza,
nem sequelas do mesmo teor.
No “Diário de
Lisboa” de 12 de Abril, em texto não assinado, a miséria urbana voltou a ser
focada num registo “objectivo”, seguro, apontando causas da mendicidade e
sugerindo caminhos, mas sem ousar sentir na pele o que viviam os miseráveis de
Lisboa. O próprio Leitão de Barros dirigiria as edições seguintes da revista
para um registo mais informal, concentrando-se nas novidades do cinema e da
rádio portuguesas, suas paixões declaradas, e menos nas questões políticas e
sociais.
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"Diário de Lisboa", 12 de Abril de 1930 (reproduzido a partir do arquivo da Fundação Mário Soares) |
Mário Domingues
foi quase de seguida convidado por Reinaldo Ferreira para chefiar a redacção da revista Repórter X, projecto imaginativo mas pouco sustentado, que o são-tomense abraçou apaixonadamente. Quase um ano depois da aventura na gandaia, em 11 de Abril de 1931, Mário Domingues patrocinou um esforço parecido do repórter Américo Faria que, ao serviço do Repórter X, procurou viver entre os rufias de Lisboa. Recordando a sua própria experiência, Domingues escreveu em editorial: «Roçámos por muita lama; dormimos em pocilgas inconcebíveis; conhecemos na intimidade vadios que já eram veteranos; aprendemos a fazer dinheiro com os despojos que a cidade despreza; soubemos como poderíamos, para fugir ao inferno da miséria, emigrar clandestinamente para a Argentina; escutámos de bocas impuras de megeras prostituídas propostas ignóbeis de mancebia torpe; observámos como se consegue viver largamente da caridade pública bem explorada (…) e concluímos que a maioria dos maltrapilhos que tu, leitor, vês passar enojado não é má, é infeliz, infinitamente desgraçada.»
Em 1932, encontramo-lo numa publicação que mudaria a sua vida. Dirigiu a revista “O Detective”, encontrando no registo da novela policial e no contacto com as forças de segurança da cidade a matéria-prima para a carreira que abraçaria de seguida.
Em 1932, encontramo-lo numa publicação que mudaria a sua vida. Dirigiu a revista “O Detective”, encontrando no registo da novela policial e no contacto com as forças de segurança da cidade a matéria-prima para a carreira que abraçaria de seguida.
Na verdade,
apesar de manter colaborações dispersas em jornais e de criar peças de teatro
(duas, por exemplo – “Má Raça” e “A Sombra do Passado” –, foram proibidas em
1938 pela Comissão de Censura por voltarem aos registos de crítica social e
denúncia da miséria, pouco interessantes para o regime), Mário Domingues
abraçou a carreira de escritor. Foi autor, nas décadas seguintes, de dezenas de
novelas policiais, vertendo para o papel a riqueza do contacto que absorvera na
relação com polícias e reclusos em “O Detective”. Cioso da importância do
estrangeiro nas indústrias culturais portuguesas, adoptou, como bem nota o
blogue Policiário de Bolso,
pseudónimos estrangeirados, uma prática que Dinis Machado também seguiria muito
mais tarde.
Espreite com
atenção a sua estante de livros mais antigos. É bem possível que ali encontre
obras de Fred Criswell, Henry Jackson, James Black, Joe Waterman, Marcel
Durand, Max Felton, Nelson MacKay, Peter O‘Brion, Thomas Birch ou W. Joelson.
Em comum entre estes prolíferos novelistas (e talvez outros de que ninguém
sabe), uma circunstância: todos foram obra da imaginação de Mário Domingues, o
jornalista nascido na Roça Infante Dom Henrique (na ilha de São Tomé), que
vivera na aldeia da Porcalhota na juventude, até se mudar com a avó e a irmã
mais velha para Lisboa, e que, um dia, abandonou a elite para viver durante oito
dias como vagabundo nos bairros pobres da cidade.
EPÍLOGO
Luís Dantas
escreveu, num e-book, a obra mais completa sobre Mário Domingues, reproduzindo
ali todo o texto publicado nos “Notícias Ilustrado” de 1930.
É através desta fonte que conhecemos mais duas facetas de Mário Domingues. Boa
parte do seu sustento nas décadas de 1930 e 1940 proveio das traduções de obras
estrangeiras. Mais tarde, o autor enveredou também pela biografia histórica,
assinando quase uma dezena de obras sobre personalidades da história
portuguesa, cuja relevância é discutível na medida em que expressam
documentação deficiente e liberdades criativas românticas, resultando em
exaltações e denúncias pouco credíveis de vários reinados portugueses.
Em 1959,
Domingues escreveu também um pequeno texto sobre o fecho do Café Royal, o seu
destino predilecto, em cujas mesas idealizara mil projectos com Reinaldo
Ferreira – a evocação (digitalizada aqui, página a página, pelo projecto Mosca da
Universidade de Évora)
vale como máquina do tempo para a Lisboa dos cafés e dos bares do início do
século. Em 1960, assinou a sua obra mais polémica, redigindo o “Menino Entre
Gigantes”, registo quase autobiográfico, no qual o tema do racismo aflora,
mesmo sob a vigilância da censura.
Aos poucos, porém, o seu nome foi sendo esquecido, tal como a memória da sua saga entre os miseráveis de Lisboa se foi esfumando. No livro-entrevista que realizou em parceria com Artur Portela ("Cardoso Pires por Cardoso Pires", 1991, pp. 59), o escritor José Cardoso Pires lembrou-o como um exemplo, a par de Julião Quintinha, António Ferro, Leitão de Barros e Chianca de Garcia de uma geração de jornalistas urbanos, "escritores menores", é verdade, mas "homens que escreviam dia a dia para Lisboa [e] se aventuravam a uma prosa citadina". O legado de Mário Domingues, porém, desapareceu.
Aos poucos, porém, o seu nome foi sendo esquecido, tal como a memória da sua saga entre os miseráveis de Lisboa se foi esfumando. No livro-entrevista que realizou em parceria com Artur Portela ("Cardoso Pires por Cardoso Pires", 1991, pp. 59), o escritor José Cardoso Pires lembrou-o como um exemplo, a par de Julião Quintinha, António Ferro, Leitão de Barros e Chianca de Garcia de uma geração de jornalistas urbanos, "escritores menores", é verdade, mas "homens que escreviam dia a dia para Lisboa [e] se aventuravam a uma prosa citadina". O legado de Mário Domingues, porém, desapareceu.
Socorro-me por
isso de um parágrafo das memórias de Luís Dantas para evocar este capítulo da
história do jornalismo que, se não tem outra validade, procura preservar o que
é efémero no mundo dos jornais: “Quando o conheci, por mero acaso, na redacção
do jornal O Século, não me percebi se o velho jornalista tinha desatinado.
Pareceu-me que andava por ali com olhar errante e coração fraquejado,
cumprimentando um ou outro colega com vénias para voltar a sair num choro
silencioso. Depois, agarrado ao bordão, retirava-se para as bandas da Ribeira
Nova, a São Paulo. Talvez fosse beber um bagaço e acender recordações de tempos
resplandecentes… E morreu assim, com essa mania, quase esquecido, em 1977.”
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Mário Domingues em reportagem para a Repórter X, de que foi chefe de redacção (Repórter X, 1930, 19. A partir de arquivo da Hemeroteca Digital) |
sexta-feira, março 29, 2013
Ramalho, o Papa, Darwin e o Rei à Espera
(Hesito em
incluir esta narrativa no leque de histórias improvisadas do jornalismo
português. É verdade que Ramalho Ortigão foi um distinto jornalista e terá sido
na redacção de textos para jornais que mais se distinguiu. É verdade também que
este caso foi parcialmente filtrado para periódicos portugueses na primeira
década do século XX. Mas é inquestionável que, durante a missão vaticana,
Ramalho não se sentiu jornalista, nem agiu como tal. Fica, por ora, dentro deste
lote. Os leitores dirão de sua justiça).
"Wikipedia Commons" - Domínio livre. |
O ano era 1901.
Passavam doze meses sobre a morte de Eça de Queirós. Os amigos do escritor
poveiro esforçavam-se por ajudar a viúva e os filhos, sabendo que Eça, como
aliás acontecera durante o tempo em que vivera, não deixara fortuna. Bernardo
Pinheiro Correia de Melo, o primeiro conde de Arnoso, um dos membros dos
Vencidos da Vida e amigo de infância de Eça e Ramalho Ortigão, pedira na Câmara
dos Pares uma pensão para a viúva e para os filhos do escritor, em nome dos
serviços prestados à literatura portuguesa. Ramalho, a Ramalhal figura que Eça
descrevera em tempos e que com ele colaborara intensamente durante três
décadas, arregaçara as mangas e debruçara-se sobre as obras inéditas que Eça
deixara quase terminadas. Durante um ano, trabalhou no manuscrito de “A Cidade
e as Serras”, deixando-o quase pronto para edição. Havia outros manuscritos na
calha, mas, a 28 de Agosto de 1901, o escritor portuense decidiu partir
abruptamente para Itália.
A acreditar nas
suas palavras, viajou sem agenda, ao sabor do momento, desejoso de beber a
cultura artística e religiosa de Milão e Roma, tendo para isso escrito ao conde de Arnoso, secretário particular do rei, para solicitar uma audiência a Dom Carlos I que o dispensasse temporariamente do serviço na Biblioteca da Ajuda. Entre
Setembro e Dezembro desse ano, Ramalho viveu na capital italiana, acompanhado
de amigos (é identificado, por exemplo, o “amigo Monteverde”, que poderá ser o
escultor italiano Giulio Monteverde). Levaria, ou não, uma missão diplomática
em mente? Ou, já em Roma, teria sido um improvisado correio diplomático, por
necessidade de uma das partes envolvidas? Não se sabe com certeza.
Sabe-se apenas
que, certo dia, de surpresa, Henrique O’Connor Martins, encarregado de negócios
interino da embaixada portuguesa de Roma (onde esteve, segundo preciosa
informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 1896 a 1909) e amigo de
Ramalho, pediu em seu nome uma audiência ao papa Leão XIII, através do cardeal
Rampola, secretário de Estado da Santa Sé durante este papado.
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Henrique O'Connor Martins, em quadro pintado por Sanchez de Barbuda "Illustração Portuguesa", 1903, n.º 18 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
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Revista "Ocidente", n.º 887, 1903 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
“A minha
surpresa foi tão grande como se as sibilas e os profetas do Juízo Final de
Miguel Ângelo acabassem de me anunciar que o próprio Padre Eterno me mandava
chamar. Podia lá ser! Eu, velho filho do século, ferrugento racionalista, pobre
pecador, discípulo, no último banco, de Spinosa, de Darwin, de Littré, de
Auguste Comte, de Renan, antigo entusiasta de Byron, de Hugo, de Carlyle, de
Proudhon, de Michelet, de Ruskin, ser assim recebido na paternal intimidade do
Santuário pelo sucessor de São Pedro, pelo vigário de Cristo, afigurava-se-me a
mais inverosímil anomalia, parecendo tacitamente envolver da minha parte uma
deturpação de identidade, uma dissimulação de pessoa, quase uma insídia”,
escreveu mais tarde, na “Ilustração Portuguesa”, ao lembrar o caso [grafia
corrigida para melhor percepção do texto].
Mas quem era na
altura o sucessor de Pedro no Vaticano?
O PAPA LEÃO XIII
De 20 de
Fevereiro de 1878 a 20 de Julho de 1903, data da sua morte, o cardeal Vincenzo
Pecci, antigo arcebispo de Perugia, foi o papa Leão XIII. Serviu durante 25
anos na cadeira de São Pedro, num período conturbado. Pela primeira vez, a
Santa Sé estava confinada às fronteiras do Vaticano na sequência do conflito
aberto em Itália com Vítor Emanuel (sogro do “nosso” rei Dom Luís) e depois com
o rei Humberto. Como notou Ramalho, “Leão XIII é o primeiro da sua hierarquia
que cinge a tiara não tendo por estados pontifícios mais que a estância do
Vaticano, onde a estátua de Garibaldi, do alto do Janículo, o fita
vitoriosamente como eterno prisioneiro da Itália irredenta”.
Ramalho
encontrou de facto duas cortes em Roma, uma no Quirinal, outra no Vaticano,
“duplicando o número dos representantes diplomáticos de todos os países” e
obrigando-os a reunir entre si em “territórios extra-oficiais e neutros, mais
facilmente acessíveis aos viajantes, como os halls dos grandes hotéis, o salão dos restaurantes à moda e
o lindo tea room do Corso”. Em
face do que sabemos hoje, é duvidoso que a “defrontação dentro do mesmo povoado
de duas autoridades adversas (…) produz[isse] no público romano o mais singular
respeito pela opinião alheia”, como notou o escritor. O papa estava confinado
por decreto ao Vaticano e a situação era insustentável.
Leão XIII fez o
que pôde durante estes anos de conflito: escreveu. Algumas das mais duradouras
encíclicas papais foram produzidas pelo seu punho, valendo-lhe o epíteto de
“papa das doutrinas sociais e económicas”. Num discurso invulgarmente moderno,
mediou os conflitos entre patrões industriais e a crescente classe operária,
estipulando direitos e deveres para o capital e para o trabalho (Rerum Novarum,
1891). De alguma forma, a doutrina social da Igreja foi fundada no seu papado.
Foi também um
papa que percebeu rapidamente o poder dos novos meios de comunicação de massa,
baseados na reprodução da imagem. Tornou-se um dos primeiros papas fotografados
e foi decerto o primeiro filmado, graças a um acordo com o cineasta William
Dickson que, depois de longos meses de negociação, foi autorizado a filmar Leão
XIII em passeios pelos jardins do Vaticano (1898).
Para além do
conflito político com Itália, Leão XIII teve outro incêndio para apagar e,
neste caso, não foi propriamente bem sucedido. Assustada com as implicações das
obras de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, particularmente do ser
humano, a Igreja manteve uma distância prudente em relação ao evolucionismo e
ao progresso da ciência. Nenhum papa abordara oficialmente o assunto antes de
Leão XIII. Na encíclica Providentissimus Deus
(1893), o pontífice tocou vagamente no problema, alinhavando argumentos a favor
e contra o progresso científico, usados depois pelos dois campos em disputa.
Criticou por exemplo “a sede pela novidade” e a “liberdade de pensamento sem
restrições” do pensamento científico, mas reconheceu também que a Bíblia não
deveria ser lida no sentido literal. Não querendo alienar o mundo científico do
catolicismo, mas recusando mérito às teorias da selecção natural e da evolução,
Leão XIII manteve a Santa Sé no limbo. Aliás, só em 1950 uma encíclica referiu
explicitamente o corpo teórico de Charles Darwin – em Humani Generis, Pio XII declarou-o
não contraditório com a religião, na medida em que o evolucionismo trata da
origem do corpo humano em matéria viva e não da alma, embora o mito de Adão e
Eva como primeiros antepassados do homem fosse objecto de debate teológico até
2004.
Leão XIII não
era um conservador. Tinha até uma curiosidade infindável sobre a ciência.
Sabe-se que recebeu Júlio Verne em 1884 e interveio directamente para terminar
o absurdo impedimento aos católicos de frequentarem as Universidades de Oxford
e Cambridge em 1895. Mas não conseguiu destrinçar os méritos do Darwinismo dos
postulados dos seus continuadores, como Herbert Spencer e o seu princípio da
sobrevivência dos mais fortes, ou Francis Galton. E ficou, neste tema, do lado
mais frágil da história.
RAMALHO E A LEITURA
ENVIESADA DE DARWIN
Nos quinze dias
que sucederam ao pedido de audiência ao cardeal Rampola, Ramalho entreteve-se a
escrever um documento que resumia a sua obra literária, de “antigo
panfletário”, “sem tentar atenuá-la pela contrição de qualquer pecado que nela
se contenha, a não ser o da sua condenável perfeição artística”. O documento autobiográfico serviu para o Maestro de Câmara do papa conhecer a identidade do diplomata improvisado e viabilizar a audiência, percebendo simultaneamente que estava defronte de um antigo autor que assumira no passado profundas posições anticlericais. Em 1877, por exemplo, Ramalho escrevera uma brilhante e venenosa carta aberta ao papa Pio IX (inserida nas Farpas e republicada em 1882, no jornal A Imprensa, n.º 32).
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
No processo,
Ramalho desvirtuou o pensamento de Darwin, imaginando que Leão XIII o condenara
ou, pelo menos, percebera “o erro fundamental da doutrina de Darwin”. Em nenhum
momento, Darwin antevira que o “agente principal da conservação e do
desenvolvimento das espécies [é] o esforço individual na luta pela vida,
enunciando o dogma cruel do struggle for life”, como Ramalho escreveu. Foi assim despropositada toda a sua arenga –
aparentemente discutida pelo próprio com o papa – contra aqueles que não
perceberam que “a espécie unicamente vinga e prevalece, não pelo feroz impulso
da combatividade, mas pelo meigo instinto do associamento [sic] e da unificação
dos indivíduos, como se dá não só com as humildes formigas e com as frágeis
abelhas, mas com os mais possantes e ferozes dos carnívoros, sempre que eles se
encontram em supremo conflito com a destrutiva hostilidade da concorrência”.
Nunca Darwin, nem mesmo Spencer, tinham proposto tal coisa. Desconhece-se,
infelizmente, se o papa Leão XIII concordou com os argumentos de Ramalho, mas o
escritor e jornalista não tinha sido convocado para uma conversa teológica. O
papa tinha motivos mais prosaicos para lhe falar.
A MENSAGEM
Foi num domingo,
dia 10 de Novembro de 1901, pelas onze horas de manhã. Ramalho foi avisado do horário da audiência com dois dias de antecedência pelo Maestro de Câmara. Segundo o escritor, mais ninguém
esteve presente na reunião. Sentado numa cadeira de espaldar, "como Voltaire na
estátua do Houdon", o papa chamou-o num francês com sotaque italiano. "Pus um joelho no chão e prostrei-me, reverente, perante a majestade de um homem inteiramente vestido de branco no meio de uma câmara vermelha", contou o escritor numa carta particular. A "magreza" e a "senilidade" do interlocutor "dão-lhe um aspecto que já não parece humano".
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Aproveitou entretanto para lançar a escada para outro tema – a decadência do clero português, a sua
mediocridade intelectual e moral desde meados do século XIX. Por outras
palavras, o escritor atribuiu às lacunas culturais do clero a incapacidade para
manter a elite e o povo português no mesmo espírito de devoção católica que
marcara os sete séculos anteriores. Enquadrou-os em retórica sobre a devoção
portuguesa à Santa Sé e os contributos de tantos homens portugueses do clero
para a divulgação da fé, mas o papa percebeu a posição. Discutiram a reforma
setecentista da educação do marquês de Pombal, descrito inesperadamente pelo
papa como “grande homem e, o que não é muito frequente, também um bom
católico”. E Leão XIII cunhou
depois a mensagem que deveria ser enviada aos portugueses: “É para elevar esse
nível que o Colégio Português em Roma existe. Procurarei aperfeiçoá-lo e, não
obstante a minha pobreza, vou-lhe consagrar trezentos ou quatrocentos mil
francos. Não conhece o Colégio?... Vá vê-lo... E informe o rei do que pretendo
fazer pelo clero português.”
Como notou Luís
Salgado de Matos, num artigo de 1994 (aqui), o papa partilhava a mesma
perspectiva que Ramalho transmitiu. Aliás, segundo o mesmo autor, o diagnóstico
era-lhe familiar porque também o núncio apostólico em Lisboa enviava sucessivos
relatórios sobre o tema. O Colégio visava acolher estudantes de Lisboa, pagos
pelas dioceses portuguesas, uniformizando a sua educação religiosa e aumentando
os seus horizontes culturais. A decisão viria aliás a marcar a educação dos
religiosos portugueses nas primeiras décadas do século XX.
JORNALISTA OU
DIPLOMATA
Ramalho saiu da
audiência com uma bênção papal para si e para a sua família, tendo sido esse o
ângulo que escolheu mais tarde para relatar a aventura. Mas, na verdade, em
1901, Ramalho não parecia um jornalista ou um escritor. No dia seguinte, escreveu do Hotel do Capitólio ao
conde de Arnoso, de forma a que este informasse Dom Carlos I da posição papal. Pensou em redigir directamente a missiva ao rei, mas pareceu-lhe "impertinente", como reconheceu na carta ao conde.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”.
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"Flores de Roma", por Ramalho Ortigão, 24 de Dezembro de 1906, "Ilustração Portuguesa" (página recuperada a partir da Hemeroteca Digital) |
Pouco mais tempo
esteve em Roma, a cidade que, “de século para século, através de todas as
vicissitudes da política e de todas as evoluções do progresso, sobre sucessivas
e sobrepostas ruínas de todas as caducidades, continua a exercer nos homens o
mesmo invasivo sortilégio, a mesma carinhosa atracção que tinha na
antiguidade”. Partiu para Nápoles nos dias seguintes.
A missão do
diplomata, que fora jornalista e escritor, terminara.
O ARTIGO QUE ESTEVE PARA NÃO EXISTIR
Segundo a correspondência guardada no espólio do conde de Arnoso na Biblioteca Nacional [E32, v. sobretudo E32/2645], Ramalho colocara toda a informação de que se lembrara na carta improvisada ao secretário particular de Dom Carlos em 1901, pelo que, em Outubro de 1906, quando se preparava para redigir o seu texto sobre as memórias do encontro papal, viu-se na necessidade de apelar ao amigo "que tão bem arquiva muitos papéis, [se] não terá e não me quererá emprestar por uma hora uma carta que sobre o aludido assunto então lhe escrevi de Roma". O conde de Arnoso em boa hora o fez, caso contrário não teria sido passado à posteridade o minucioso relato de 1906.
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Revista "Ocidente", n.º 1167, 1911 (reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) |
Dias depois, uma nova carta foi enviada pelo escritor ao amigo. Estava visivelmente agastado com a revista "Ilustração Portuguesa" e perguntava se valeria a pena ele, o conde de Arnoso, o conde de Sabugosa e Luiz de Magalhães colaborarem, como tinham prometido, no número especial de Natal da publicação, "uma revista veículo de tais opiniões. Por minha parte, acho que não". A que se referia o escritor?
Sabemo-lo pela carta seguinte, igualmente dirigida ao conde de Arnoso e redigida com fúria invulgar num homem que se gabava da sua contenção. É a mais violenta das dezenas de cartas de Ramalho Ortigão para o conde de Arnoso. E visava Fialho de Almeida, notável sátiro da sociedade portuguesa que, na edição de 29 de Outubro de 1906, redigira a crónica "Lisboa Monumental".
No texto, Fialho escandalizou Ramalho pelo tom anticlerical e fortemente crítico das autoridades. Transcrevo algumas passagens que decerto enervaram o escritor: "O circo equestre não tem mais viabilidade, pois temos em Santo Antão coliseu para dez ou vinte gerações de títeres e palhaços"; "[Este é] um tempo em que o homem carece de se baptizar todos os dias, o que faz da casa de banhos contemporaneamente o único baptistério a abrir nesta terra de gente por lavar"; "quanto a jazigos de família, uma vez o forno crematório decretado, traremos para casa em boiões as cinzas dos ancestros, com que bordaremos as letras do arroz doce, nos festivos jantares de aniversário"; "cada brasileiro ou rendeiro rico teve licença de erguer a casa a esmo, conforme planos de mestre António ou mestre Isidro, e isto sem a Câmara lhes pedir outras contas que não fossem alcavalas tributais – sua apoucada e cerdosa ocupação"; e, por fim, "é certo que um pouco de deboche activa a civilização dos povos bisonhos e é um factor maravilhoso de sugestões. Roleta, mulheres, circos de verão, teatrofones, música clássica, atlética, mascaradas, festas de carácter pitoresco e popular (…)"
Tudo indica que os amigos consideraram a fúria injustificada e puritana, pois Ramalho disse depois submeter-se "gostosamente às opiniões da maioria", mas ainda foi ameaçando, com implacável raiva, que "nada me seria mais fácil, quando o julgar oportuno, do que desfazer o focinho de Fialho de Almeida em cima da sua prosa".
EPÍLOGO
A audiência
papal foi caindo no esquecimento nas décadas seguintes. A sua
reabilitação histórica partiu de António Rodrigues Cavalheiro, historiador, deputado da União Nacional e autarca. Através da condessa de Arnoso, viúva de Bernardo de Melo, Cavalheiro teve acesso ao espólio do conde e publicou informação sobre o episódio – quer em artigos de jornal, quer em artigos mais estruturados como na "Panorama" de 1960. Fê-lo com uma marcada matriz ideológica, evocando as lições de religiosidade extrema do povo português que o caso encerrava.
Isso mesmo pode
ser avaliado na sua coluna de opinião de 26 de Setembro de 1944, no “Diário da Manhã”,
jornal oficial da União Nacional. A propósito dos 29 anos da morte do escritor,
o historiador recordou então o ensaio “Flores de Roma”, publicado por Ramalho
na “Ilustração Portuguesa”.
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"Diário da Manhã", 24/09/1944, por Rodrigues Cavalheiro |
Cavalheiro não
deixava de lamentar as diatribes de “As Farpas” do século XIX, “páginas menos
dignas da sua alta craveira mental, com que pagou tributo às superstições
racionalistas do seu tempo”. Em 1901, porém, segundo Cavalheiro, Ramalho já
estava noutro patamar da evolução espiritual, na “ascensão para a grande luz do
Catolicismo”.
Para o deputado
da União Nacional, o episódio encerrava uma lição relevante: a resposta
de Ramalho ao exagero das tomadas de posição de alguns jornalistas e políticos
sobre a Santa Sé, meras expressões de arruaça intelectual que não poderiam
esconder a relação privilegiada do país com a Igreja. E terminava: “Que
profundo tema de meditação para quem não abdique totalmente da faculdade de
pensar e de concluir!”
sexta-feira, março 22, 2013
As fotografias do rei em fuga
CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
quinta-feira, março 21, 2013
Comerciantes de São Miguel, 1945
"O Seculo ilustrado", 3/11/1945 |
Na legenda, infelizmente ilegível na fotocópia (a tinta preta perdeu-se no fundo vermelho), refere-se: "Caixas registadoras Hugin. Os comerciantes dos Açores dão a preferência a esta grande marca sueca."
E, nas imagens, ilustram-se as seguintes personagens:
Na primeira fila, da esquerda para a direita: Mercearia Caetano, Ponta Delgada; Casa Zenite, Rua Marquês da Praia e Monforte.
Na segunda fila, da esquerda para a direita: Electro (João Soares jr.), Mercearia de Carlos & Cia, Largo 2 de Março; A. M. Ramos, Ponta Delgada; Casa Pepe, Ponta Delgada
Na terceira fila, da esquerda para a direita: Loja Taveira, Ponta Delgada; Café para Todos, Ponta Delgada; Loja Vieira, Vila da Lagoa; Farmácia Vieira Botelho, Sucessor, Ponta Delgada
Na última fila, da esquerda para a direita: Casa Tinoco, Ponta Delgada; Casa Castelo, José Álvaro Guerreiro, Sucursal de Ponta Delgada.
domingo, março 17, 2013
O dedo de Ferro na capa do Notícias Ilustrado
CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
terça-feira, março 05, 2013
A fotografia de Luiz Carvalho selou o destino da Dona Branca
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"Tal & Qual", 5 de Março de 1983 (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Faz hoje 30
anos. No dia 5 de Março de 1983, na sua edição n.º 140, o semanário Tal & Qual apresentou aos portugueses Maria Branca dos Santos. Para
muitos lisboetas, frequentadores habituais das escadarias de madeira da sua
residência, na Rua Dr. Almeida Amaral, ao Campo Mártires da Pátria, não foi
propriamente uma apresentação. Conheciam aquela cara e aquela história – a
imagem acabada da “tia boa e tolerante que, quando éramos miúdos, nos dava
cubos de marmelada guardados num velho e pesado aparador, situado numa soturna
sala de jantar”, como mais tarde a descreveria o jornalista Hernâni Santos.
Nesse dia, sem que ninguém o soubesse, começou o fim da Dona Branca.
Por admissão do
jornalista José Rocha Vieira, à época director do jornal e autor do primeiro
texto sobre Maria Branca dos Santos, o “furo” jornalístico começou com quatro
clientes da banqueira e com as suas histórias de encantamento com a “mulher que
é um autêntico banco”. No Portugal de 1983, de depressão económica e inflação
galopante, o enredo de Dona Branca era irresistível: uma simpática anciã da
Mouraria, de 72 anos, que ora vestia casaco de peles na rua, ora o trocava por
um avental em casa; que tratava todos por “ó filho” e “ó filha”; que não
resistia a contar a sua anedota picante; e sobretudo que, apesar da iliteracia,
pagava juros de 10% ao mês aos depositantes que lhe confiavam as economias.
Os quatro
testemunhos garantiam ao jornal que “o ‘cacau’ está tão seguro nas mãos desta
mulher de cabelos brancos como nos cofres da mais sólida instituição de
crédito”, mas faltava credibilizar a narrativa com uma fotografia sugestiva da
banqueira. O objectivo foi concretizado pelo fotógrafo Luiz Carvalho, à data o
único repórter fotográfico do Tal & Qual e na verdade o jornalista que
desbloqueou o contacto com a senhora (alguns pormenores adicionais aqui).
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Fotografias de Luiz Carvalho (reproduzidas a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Com um misto de oportunidade e persuasão, Carvalho fotografou o quotidiano da entourage
da banqueira e captou a senhora num momento que viria a ser publicado ad
nauseam nos meses seguintes: a imagem mostrava-a confiante,
sorridente, saindo de um prédio, de casaco de peles e colar de pérolas, ajudada
por uma colaboradora. Aparentemente captada à distância, mas autorizada pela
própria, a fotografia revelava ainda a pequena “peculiaridade física
indispensável a uma tia: um dos dentes da frente, espetado e comprido,
encavalita-se-lhe no lábio inferior, ficando à mostra quando fecha a boca”. Em
manchete – e as manchetes provocatórias e divertidas do Tal & Qual inauguraram um
estilo de que O Independente viria a ser herdeiro anos depois –, o jornal
escrevia: “Dona Branca – Uma banqueira às suas ordens.”
Numa curta
entrevista telefónica, a “benemérita” garantia nada ter “a dizer, meu
filho. Posso pedir dinheiro emprestado e posso dar por ele os juros que quiser.
O meu dinheiro é meu: posso rasgá-lo, dá-lo ou até ir à janela e deitá-lo para
a rua.”
RESPONSABILIDADE
Estavam feitas
as apresentações, mas nem os jornalistas adivinhariam o turbilhão que se
viveria na sociedade portuguesa nos 19 meses seguintes, até à detenção da Dona
Branca, em Outubro de 1984. Em jeito de anedota, vale a pena referir que, nessa
reportagem inaugural, o jornal cometeu involuntariamente um lapso, noticiando
que o escritório onde a banqueira também fazia empréstimos se situava na Rua
Abade Faria, n.º 30. Foi um erro incómodo, como se veria uma semana mais tarde.
O escritório ficava no n.º 20 e, durante toda a semana, os moradores do 30 não
tiveram sossego, tantos eram os toques na campainha dos novos depositantes.
Num texto
estupendo (aqui),
Luiz Carvalho conta que demorou dois meses a persuadir a benemérita a deixar-se
fotografar sem se esconder. Prometeu-lhe que nada de mal sucederia. Era uma
promessa impossível de cumprir, pois os mais de cem mil exemplares do jornal
circularam pelo país e criaram um mito imparável. Como dizem os dinamarqueses,
as promessas e os ovos são facilmente quebráveis.
A operação da
“banqueira do povo” baseava-se num ritmo estável de depósitos e numa rede de
confiança que impedia estranhos (no sentido de não conhecidos dos membros da
pirâmide) de entrarem no negócio. Enquanto se manteve nesses parâmetros, a
operação progrediu, apesar dos indícios mais tarde apurados de que os
colaboradores da Dona Branca desviavam regularmente fundos, comprometendo o
esquema piramidal de crédito. A celebridade proporcionada pelo Tal & Qual e
pela fotografia de Luiz Carvalho selou depois o destino da benemérita.
ESTADO DE GRAÇA
Jornal popular,
de poucas páginas, poucas palavras, poucas fotografias e poucas peneiras, o Tal & Qual encontrou na Dona Branca o seu filão. Nas semanas seguintes, a
benemérita foi regularmente tema de notícias. Ora porque o jornal procurava
perceber o seu complexo esquema de investimento imobiliário capaz de suportar o
pagamento de juros aos depositantes (12/03/83), ora porque os nobres El Pais, Guardian ou Frankfurter Rundschau lhe dedicavam reportagens (19/03/83), ora ainda porque a Dona
Branca não resistira a telefonar para o programa “A Festa Continua”, de Júlio
Isidro, na RTP, licitando por 350 contos um quadro no âmbito de uma emissão de apoio
à Casa da Imprensa (11/05/83). O público no Cinema Europa fez “aahhh” quando soube da
identidade da benemérita, e a “gentil banqueira do povo” marcou mais uns pontos
no imaginário popular, que a romantizou como uma encarnação moderna do Padre
Cruz.
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"Tal & Qual", 3 de Fevereiro de 1984 (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Perto do final
do ano de 1983, o verniz começou a estalar, sempre com o Tal & Qual no comando
da reportagem. Por um lado, a revelação de que recebia uma pensão de pobreza de
3.900 escudos foi escandalosa, face ao conto de fadas que se conhecia; por
outro, Ernâni Lopes, ministro das Finanças, recomendou na RTP cautela aos
depositantes e, em privado, pediu à Inspecção de Crédito do Banco de Portugal
para investigar a operação. No primeiro inquérito, aliás, a Dona Branca chorou
copiosamente e explicou que só ajudava os necessitados. Os inspectores
entreolharam-se quando tomaram conhecimento da sua lista de clientes. Entre os
depositantes, constavam deputados, políticos, figuras da televisão e do cinema
português. E vários inspectores da Policia Judiciária.
A QUEDA DO
ABISMO
No imaginário
popular, brincava-se que a Dona Branca daria um ministro das Finanças mais
capaz do que “o sovina Ernâni Lopes”, mas, a partir de Fevereiro de 1984, o
ritmo dos depósitos começou a decrescer. Emergiram na imprensa suspeitas de
insolvência. Apesar disso, pelo menos para o exterior, o negócio prosperava. Ao
escritório da Rua Abade Faria, somava-se agora outro na Avenida Rio de Janeiro.
Dezenas de angariadores patrulhavam a cidade. Acumulavam-se sacos de plástico
com dinheiro na sede da organização. Passavam-se recibos de depósito sem
confirmação. Cega pela atenção pública, Dona Branca parecia ter perdido o
controlo da operação. Ao fotógrafo de uma agência francesa que a captou no seu
Mercedes com a sobrinha, a benemérita pespegou dois beijos na face.
Em Junho, Maria
Branca dos Santos anunciou um período de meditação, coincidente com a fase em
que já não conseguia cobrir os juros exorbitantes. Surgiram os primeiros
relatos de burla na sua própria organização. De contas paralelas em Espanha e
na Suíça. Descreviam-se recibos de depósito forjados, mas pagos como válidos
(saber-se-ia mais tarde, durante o julgamento, que o principal livro de contas
da organização era a memória da Dona Branca). Branca vendia património imobiliário e jóias para cumprir os compromissos.
Homem de muitas guerras, com 92
anos de experiência, o banqueiro Cupertino de Miranda resumia o que parecia
inevitável: “Na actual conjuntura, não conheço nenhum negócio legítimo que dê
sequer 30 por cento. Ora 120 por cento ao ano é inconcebível.”
Fosse por
convicção ingénua ou por desejo de prolongar a história jornalística da sua
publicação, Hernâni Santos continuou a alimentar o mito. A 5 de Junho de 1984,
relatou a história da benemérita que apoiara a Associação de Deficientes das
Forças Armadas e que se preparava para oferecer equipamento ao Instituto de
Oncologia. Pior do que isso: o jornal publicitou casos de sucesso de
depositantes a quem as contas continuavam a bater certo e para quem o dinheiro
estava seguro.
Um dia, o
dinheiro deixou de estar seguro. A conta 631 5356 do Banco Português do
Atlântico, na Praça de Londres, deixou de ter cobertura. Os depósitos cessaram.
Os clientes da Dona Branca queriam levantar as economias e a conta estava
“careca”. Colaboradores próximos publicavam desmentidos na imprensa, recusando
qualquer ligação à operação da benemérita. Com ironia, mas alguma falta de
vergonha, o Tal & Qual rotulou o caso com uma manchete inesquecível: “A
Branca... rota” (07/09/1984).
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"Tal & Qual", autor desconhecido (fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional) |
Foi o pandemónio
em Lisboa. Meio milhar de pessoas acorreu aos escritórios. Foi necessário
destacar um contingente da PSP para a Avenida Rio de Janeiro porque, nas
palavras de Rui Machete, ministro da Justiça, “não podemos permitir que a Dona
Branca seja sovada”. Encenaram-se tentativas de recuperação em Setembro. Numa
das ocasiões, um falso depositante aproximou-se do escritório e, à frente da
fila de credores, garantiu que ali ia deixar 1.500 contos por ter confiança na
banqueira. Era tarde. Nem os vinte investigadores da PJ que tinham caído na
esparrela conseguiram recuperar os seus depósitos. A fonte secara.
No dia 4 de
Outubro de 1984, a Dona Branca foi presa. Nunca se soube o volume total de
depósitos perdidos. Morreu em Abril de 1992, numa casa de saúde, praticamente
cega.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.
sexta-feira, março 01, 2013
Como a Reuters e o DL acordaram o aviador mais famoso do mundo
CRÓNICA REMOVIDA. TEXTO INTEGRAL INCLUÍDO EM PAREM AS MÁQUINAS!, 2015, EDIÇÕES PARSIFAL.
sexta-feira, fevereiro 22, 2013
A gravata da União Nacional
Era segunda-feira e
isso talvez explicasse o mau humor matinal do senhor Renato. Funcionário de
longa data da União Nacional, partido único do regime, chegara a pulso a chefe
da secretaria da organização, cargo administrativo que recompensava, por fim, a
sua dedicação ao Estado Novo. Mas, hoje, o dia não lhe corria bem. Na verdade,
os dissabores tinham chegado com a eleição de António Júlio Castro Fernandes
para novo mandato na presidência da Comissão Administrativa da União Nacional
em Fevereiro deste ano de 1965.
Firme com os
subordinados, aos quais exigia disciplina feroz, e seguidor à letra dos
regulamentos, Castro Fernandes assustava toda a organização. Homens crescidos
tremiam como varas verdes face às suas fúrias, fúrias essas que também já
tinham tido o senhor Renato como alvo.
O chefe da secretaria prometera a si
mesmo que não passaria por nova humilhação.
Na agenda, neste dia
25 de Outubro de 1965, estavam compromissos previsivelmente enfadonhos. A manhã
começara com uma sessão interminável no Palácio das Galveias para comemorar o
818.º aniversário da conquista da cidade de Lisboa aos mouros. A efeméride era
absurda e pouco redonda, mas servia os interesses de propaganda do partido, uma
vez que se aproximavam as eleições legislativas de 7 de Novembro. Não estava em
risco a vitória da União Nacional (que aliás arrebatou os 120 lugares
disponíveis), mas sim a unidade pública do regime. “Escusavam porém de ter
entregue 125 medalhas de assiduidade e bons serviços a 125 funcionários da
câmara”, pensou o senhor Renato com os seus botões. O aborrecimento era tão
evidente que várias pessoas na audiência adormeceram e o senhor Renato deu por
si a contar os veios de tinta na parede.
Pior foi o que se
seguiu. Foi novamente descomposto pelo Dr. Castro Fernandes, como se fosse dele
a culpa pela estopada que a Câmara servira aos presentes. Furioso consigo
próprio, o senhor Renato saiu do Palácio desejoso de implicar com alguém. Lá
fora, o motorista António Martins Gonçalves aguardava, sorridente, pela saída
dos dignitários. Caminhando decidido na sua direcção, o senhor Renato
vociferou:
- Senhor
Gonçalves, não desconhece certamente que a farda da União Nacional implica uma
gravata preta.
Trocista, o motorista
retorquiu:
- Não,
senhor. Não desconheço.
- Queira
então explicar por que motivo enverga uma azul com pintas vermelhas.
Homem dos bairros
populares, de humor corrosivo, o motorista voltou a responder:
- Se a
União Nacional quer uma gravata preta, pois que a mande comprar e ma entregue,
porque o dinheiro não chega para tudo.
Furioso, o senhor
Renato encheu o peito de ar e atirou uma ordem dramática:
- Queira o
senhor saber que uma gravata preta custa 15 escudos e não quero que se
apresente hoje à noite em casa do senhor Conselheiro Albino dos Reis com a
gravata de que é agora portador.
Voltou rapidamente as costas, sem dar espaço para a resposta, embora lhe parecesse ter ouvido uma
frase murmurada:
- E se
fosses bardamerda?
O dia continuou. Por
motivos que o destino tece, o senhor Renato foi sendo descomposto regularmente
pelo Dr. Castro Fernandes. À noite, havia comício no Teatro da Trindade para
apresentação dos candidatos da União Nacional no círculo de Lisboa. A fina-flor
do partido estava presente. Ali estavam o general Barbieri Cardoso, o comandante
Garcia Teixeira, o Dr. Pinto de Meneses, o senhor Cazal-Ribeiro, o professor
André Navarro.
Um carro oficial
estacionou entretanto à porta. Transportava o conselheiro Albino dos Reis. Do
interior, um motorista saiu rapidamente para abrir a porta ao dignitário. O
senhor Renato esfregou os olhos para ter a certeza de que estava a ver bem.
- Aquela
besta! – vociferou, arrependendo-se de imediato por ter falado em voz alta, não fosse alguém
cuidar que se referia ao senhor Conselheiro.
Abrindo a porta
triunfalmente e sorrindo olimpicamente para o senhor Renato, o motorista
António Martins Gonçalves exibia a mesma gravata azul com pintas vermelhas.
No dia seguinte, pelas oito horas da manhã, o senhor Renato chegou à secretaria e segurou uma folha timbrada da União Nacional. Releu mentalmente o lema do canto superior direito (“Nada contra a nação, tudo pela nação”), colocou-a na sua máquina de escrever e digitou furiosamente uma carta:
“Exmo. Senhor
Presidente da Comissão Administrativa,
Para os efeitos
julgados convenientes, trago ao conhecimento de V. Exª o seguinte…”
Narrou todos os
incidentes, não se esquecendo de referir que o referido motorista tinha o
vencimento de 2.400 escudos. Entregou a folha dactilografada à secretária do
Dr. Castro Fernandes e esperou alguns minutos. Pouco depois, a folha foi-lhe
devolvida, com um comentário manuscrito no canto superior esquerdo, como o
presidente da Comissão Administrativa sempre fazia.
“Regista-se e lamenta-se
a falta de disciplina do motorista. Aplique-se um castigo de 1 dia de suspensão
sem vencimento com averbamento na respectiva folha. Previna-se que a repetição
da falta pode originar a dispensa dos seus serviços.”
Finalmente feliz, o
senhor Renato acariciou a sua gravata preta da União Nacional.
O PROCESSO
Todo o texto baseia-se no
documento número 35, de 26 de Outubro de 1965, tal como ele está disponível no
Arquivo da União Nacional da Torre do Tombo. Cota: Arquivo União Nacional,
Caixa 957, Mç2, n.º 35.
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