quarta-feira, agosto 02, 2017

Estudos da Rádio em Portugal


Declaração de interesses: fui aluno, sou colega, admirador e amigo de Rogério Santos. Julgo que essa quádrupla circunstância não afecta esta recensão, mas o leitor tem o direito a conhecê-la.

O que fazer com a rádio após a Segunda Guerra Mundial?
A pergunta foi certamente colocada no limitado microcosmo da rádio portuguesa em 1945 e serve de mote ao livro mais recente de Rogério Santos, investigador de história da rádio na Universidade Católica Portuguesa e autor de vasta obra sobre o tema. Estudos da Rádio em Portugal (Universidade Católica Editora, 2017) fornece pistas valiosas para responder à questão, descrevendo em profundidade as transformações sofridas pela produção radiofónica entre 1946 e 1974, embora o livro invista mais na década de 1960.
Em 11 capítulos, o autor apresenta a investigação, procurando os alicerces da cultura radiofónica instalada entre nós e bebendo inspiração nos escassos autores que produziram textos sobre a história da rádio (Curado Ribeiro, Eduardo Street e Serras Formigal, no interior de empresas radiofónicas; Álvaro de Andrade, na qualidade de crítico; José Matos Maia, locutor e autor com vasta reflexão sobre o métier; e José do Nascimento, autor de reflexão memorialística nunca publicada). A obra revela igualmente um esforço enorme de busca de depoimentos dos intervenientes nos vários períodos da análise (cerca de cinquenta testemunhos) e nos vestígios que a programação deixava nos jornais e revistas da especialidade.
Facilmente se depreende que nada disto fora feito em Portugal e todo o livro está recheado de novidades. Na página 29, por exemplo, o autor argumenta que a reflexão sobre rádio, durante o período em causa, foi um exercício maioritariamente masculino. Da pesquisa, emergem apenas os nomes de produtoras ocasionais como Etelvina Lopes de Almeida, Helena Bramão e Elisa de Carvalho, embora as «vozes doces e calmas das locutoras fizessem sonhar os ouvintes que as representavam de modo muito particular». É portanto um mundo díspar, onde a rádio direcciona a programação, sobretudo da manhã e início da tarde para o público feminino, mas cuja concepção e ideologia fica a cargo essencialmente de homens.
Relevo igualmente o trecho da obra que se debruça sobre a mudança dos hábitos dos portugueses e as respectivas implicações para a produção radiofónica: os períodos mais importantes da audição passam para a manhã e fim da tarde, acompanhando os movimentos pendulares dos trabalhadores de e para o trabalho. Ao mesmo tempo, a audição torna-se secundária na maior parte das ocasiões, como som de fundo, conduzindo as estações a aumentar o número de programas musicais e a reduzir a palavra falada. Rogério Santos destaca ainda a ânsia, no final da década de 1960, de captação de públicos que não se reviam na oferta nocturna da televisão com programas minoritários emitidos à noite e onde as novas sonoridades musicais ganharam pela primeira vez espaço e aura de culto.
As editoras enviavam discos para programas de rádio em exclusivo oferecendo-lhes o privilégio de as tocarem em primeiro lugar. Foi o caso do 23.ª Hora, programa da Rádio Renascença. Um curioso fenómeno ganhava igualmente forma: vários comandantes da TAP traziam discos de Nova Iorque e de Paris para as estações, muito antes da importação formal, permitindo que os novos sons e tendências chegassem rapidamente aos programas de culto e acelerando a tensão nos ideólogos da rádio sobre o que deveria constar na programação – a música clássica e erudita ou a música popular de massas.
Outros apontamentos poderiam ser feitos nesta recensão, como o divertido sarilho em que Matos Maia se envolveu, ao recriar, em 1957, a Invasão dos Marcianos de Orwell, ou as peripécias que envolveram o despedimento de Adelino Gomes, em 1972, após a emissão de um comentário sobre o acto terrorista que marcou os Jogos Olímpicos de Munique. Deixo-os ao sabor da curiosidade do leitor.
Em contrapartida, fez-me falta durante a leitura um índice onomástico que facilitasse a consulta e há uma lacuna importante nas obras referenciadas – as memórias de Carlos Cruz (Carlos Cruz, Uma Vida) não mereceram qualquer referência, apesar de o locutor dedicar largas páginas à sua experiência na rádio, ao impacte do Tempo Zip (1970-72) e até a um divertido episódio com uma mentira de Primeiro de Abril e uma nuvem de pirilampos em Sintra. Haverá certamente explicação, mas é inegável o papel de Cruz e Fialho Gouveia na modernização da rádio portuguesa da década de 1960 e na criação de um primeiro star system. 

6 comentários:

Rogério Santos disse...

Muito obrigado pela recensão. E pelo olhar arguto: falta o livro de Carlos Cruz, sim senhor. Li-o mas não o incluí. A crítica faz-se assim: apontar o interesse e as falhas. Obrigado, de novo.

ié-ié disse...

O livro de Carlos Cruz não é fiável, até pelas histórias que conta. Já o li há um tempo, mas lembro-de histórias mal contadas, por exemplo, em relação aos Beatles e ao álbum "Revolver".

A vaidade de CC toldou-lhe a razão.

PS - já agora, onde se pode comprar o livro de Rogério Santos? Obrigado.

LPA

ié-ié disse...

já vi na fnac.pt, obrigado.

LPA

Gonçalo Pereira disse...

Já cheguei tarde, Luís. FNAC e Bertrand têm-no. Vale bem a pena.
Quanto às memórias de Cruz, já me tinha dito que há trechos pouco fiáveis —será caso, como a proverbial maçã podre, para deitar fora todo o cesto ou terá sido só um lapso pontual (provocado pela soberba do autor)?
Um abraço.

ié-ié disse...

Obrigado!

Às vezes, os "lapsos pontuais" dão cabo da credibilidade, eu, pelo menos, fico sempre com a perna atrás, com a pequena dúvida em relação a tudo o resto...

Abraço,

LPA

ié-ié disse...

pé atrás... junto com a perna...

LPA