Declaração de interesses: fui aluno, sou colega, admirador e amigo de
Rogério Santos. Julgo que essa quádrupla circunstância não afecta esta
recensão, mas o leitor tem o direito a conhecê-la.
O que fazer com a rádio após a Segunda Guerra Mundial?
A pergunta foi certamente colocada no limitado microcosmo da rádio
portuguesa em 1945 e serve de mote ao livro mais recente de Rogério Santos,
investigador de história da rádio na Universidade Católica Portuguesa e autor
de vasta obra sobre o tema. Estudos da Rádio em Portugal (Universidade Católica Editora, 2017) fornece pistas
valiosas para responder à questão, descrevendo em profundidade as
transformações sofridas pela produção radiofónica entre 1946 e 1974, embora o
livro invista mais na década de 1960.
Em 11 capítulos, o autor apresenta a investigação, procurando os
alicerces da cultura radiofónica instalada entre nós e bebendo inspiração nos
escassos autores que produziram textos sobre a história da rádio (Curado
Ribeiro, Eduardo Street e Serras Formigal, no interior de empresas
radiofónicas; Álvaro de Andrade, na qualidade de crítico; José Matos Maia,
locutor e autor com vasta reflexão sobre o métier; e José do Nascimento, autor de reflexão memorialística nunca
publicada). A obra revela igualmente um esforço enorme de busca de depoimentos
dos intervenientes nos vários períodos da análise (cerca de cinquenta
testemunhos) e nos vestígios que a programação deixava nos jornais e revistas
da especialidade.
Facilmente se depreende que nada disto fora feito em Portugal e todo o
livro está recheado de novidades. Na página 29, por exemplo, o autor argumenta
que a reflexão sobre rádio, durante o período em causa, foi um exercício
maioritariamente masculino. Da pesquisa, emergem apenas os nomes de produtoras
ocasionais como Etelvina Lopes de Almeida, Helena Bramão e Elisa de Carvalho,
embora as «vozes doces e calmas das locutoras fizessem sonhar os ouvintes que
as representavam de modo muito particular». É portanto um mundo díspar, onde a
rádio direcciona a programação, sobretudo da manhã e início da tarde para o
público feminino, mas cuja concepção e ideologia fica a cargo essencialmente de
homens.
Relevo igualmente o trecho da obra que se debruça sobre a mudança dos
hábitos dos portugueses e as respectivas implicações para a produção
radiofónica: os períodos mais importantes da audição passam para a manhã e fim
da tarde, acompanhando os movimentos pendulares dos trabalhadores de e para o
trabalho. Ao mesmo tempo, a audição torna-se secundária na maior parte das
ocasiões, como som de fundo, conduzindo as estações a aumentar o número de
programas musicais e a reduzir a palavra falada. Rogério Santos destaca ainda a
ânsia, no final da década de 1960, de captação de públicos que não se reviam na
oferta nocturna da televisão com programas minoritários emitidos à noite e onde
as novas sonoridades musicais ganharam pela primeira vez espaço e aura de
culto.
As editoras enviavam discos para programas de rádio em exclusivo
oferecendo-lhes o privilégio de as tocarem em primeiro lugar. Foi o caso do
23.ª Hora, programa da Rádio Renascença. Um curioso fenómeno ganhava igualmente
forma: vários comandantes da TAP traziam discos de Nova Iorque e de Paris para
as estações, muito antes da importação formal, permitindo que os novos sons e
tendências chegassem rapidamente aos programas de culto e acelerando a tensão
nos ideólogos da rádio sobre o que deveria constar na programação – a música
clássica e erudita ou a música popular de massas.
Outros apontamentos poderiam ser feitos nesta recensão, como o divertido
sarilho em que Matos Maia se envolveu, ao recriar, em 1957, a Invasão dos
Marcianos de Orwell, ou as peripécias que envolveram o despedimento de Adelino
Gomes, em 1972, após a emissão de um comentário sobre o acto terrorista que
marcou os Jogos Olímpicos de Munique. Deixo-os ao sabor da curiosidade do
leitor.
Em contrapartida, fez-me falta durante a leitura um índice onomástico que
facilitasse a consulta e há uma lacuna importante nas obras referenciadas – as
memórias de Carlos Cruz (Carlos Cruz, Uma Vida) não mereceram qualquer referência, apesar de o locutor dedicar largas
páginas à sua experiência na rádio, ao impacte do Tempo Zip (1970-72) e até a
um divertido episódio com uma mentira de Primeiro de Abril e uma nuvem de
pirilampos em Sintra. Haverá certamente explicação, mas é inegável o papel de
Cruz e Fialho Gouveia na modernização da rádio portuguesa da década de 1960 e
na criação de um primeiro star system.
6 comentários:
Muito obrigado pela recensão. E pelo olhar arguto: falta o livro de Carlos Cruz, sim senhor. Li-o mas não o incluí. A crítica faz-se assim: apontar o interesse e as falhas. Obrigado, de novo.
O livro de Carlos Cruz não é fiável, até pelas histórias que conta. Já o li há um tempo, mas lembro-de histórias mal contadas, por exemplo, em relação aos Beatles e ao álbum "Revolver".
A vaidade de CC toldou-lhe a razão.
PS - já agora, onde se pode comprar o livro de Rogério Santos? Obrigado.
LPA
já vi na fnac.pt, obrigado.
LPA
Já cheguei tarde, Luís. FNAC e Bertrand têm-no. Vale bem a pena.
Quanto às memórias de Cruz, já me tinha dito que há trechos pouco fiáveis —será caso, como a proverbial maçã podre, para deitar fora todo o cesto ou terá sido só um lapso pontual (provocado pela soberba do autor)?
Um abraço.
Obrigado!
Às vezes, os "lapsos pontuais" dão cabo da credibilidade, eu, pelo menos, fico sempre com a perna atrás, com a pequena dúvida em relação a tudo o resto...
Abraço,
LPA
pé atrás... junto com a perna...
LPA
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