Há uma história bestial contada por Artur Portela em Fotomontagem, romance de 1978 inspirado na fundação do Jornal Novo em 1975. Portela e Sasportes, ou João
e Souzela, para nos mantermos
fiéis ao espírito da obra, começam a empreitada com a apresentação do novo
projecto jornalístico aos líderes partidários que se baterão em refregas
eleitorais nos calores de 1975 e 1976.
Começam pelo Partido Socialista, onde encontram uma confusão épica.
Ninguém sabe «do Mário» – um assessor acha que está no comício, outro crê que
está com o ministro da Roménia. Tocam telefones. Multiplicam-se reuniões.
Sobrepõem-se compromissos. Quando «o Mário», por fim, os recebe, tem a suprema
dificuldade de conseguir que os assessores lhe tragam café e chá para as
visitas. Os diálogos são memoráveis, como quase tudo o que Artur Portela
escreve.
Na curta entrevista com o ministro, cruzam-se os propósitos empresariais
e a desorganização burocrática.
«Dois cafés e um chá, sr. Ministro.»
«Não, um café e um chá!… Pois, mas já… Vocês desculpem. Este Ministério
está todo assim. De resto, não só este Ministério.» (…)
«É um pouco para clarificar a situação que surge o nosso jornal.»
«Não ria, Souzela, não ria! Isto dos cafés e dos chás não se resolve com
um jornal.»
Interrompe o contínuo.
«Há quem diga, aqui na antecâmara, que já são três cafés e três chás.
Ora, os senhores são só três.»
«Homem, eu já disse, três ou quatro vezes, que é um chá e um café.»
«Pronto, sr. Ministro.»
«Sem leite!»
«Sim, sr. Ministro.»
João aproveita então para explicar o projecto:
«Pretendemos situar-nos num espaço entre o PC e o PS.»
«Qual espaço?»
«Num espaço entre o PS e o PC.»
«Percebi perfeitamente. Só não vejo esse espaço.»
Saem, amargurados (e sem que o chá e o café tivessem aparecido), em
direcção à sede do Partido Comunista, onde explicarão o projecto do jornal «ao
camarada».
«Passaram a outra sala igual: as mesmas paredes nuas, a mesma secretária.
Ele estava a meio da sala, todo branco, cabelo e fato, na luz rasante que
rompia pela janela.
‘Sentem-se onde quiserem.’
Só havia duas cadeiras, sentaram-se.
Ele puxava de um bloco, de um lápis.
E João:
‘Bem, nós cremos que interessa a um dirigente de um partido socialista
saber que vai ser lançado um jornal socialista independente.’
E ele:
‘De quem é o jornal?’
Só isto. Nesta história anedótica com quarenta anos, encerra-se o
funcionamento do jornalismo contemporâneo quando as crises tocam à porta.
«De quem é o jornal?» – devia ser a primeira pergunta do leitor. É mesmo
a mãe de todas as perguntas.
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