segunda-feira, janeiro 11, 2016

Almada, os Painéis, A Geometria e Tudo



Com alguma discrição, a Assírio & Alvim editou, no último quadrimestre de 2015, Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo, obra organizada pelo jornalista António Valdemar, baseado nas entrevistas que conduziu com o pintor modernista no início da década de 1960 e em profunda recolha documental sobre aquilo que José de Bragança, némesis de Almada, chamou no Diário Popular o «Problema dos Painéis».
O livro revela um Almada humanizado, procurando, na última década de vida, assegurar o seu lugar na história da arte – com os seus defeitos e vícios, obsessões e irritações, mas sobretudo sempre fiel ao programa artístico que apresentara aos portugueses em 1915 e que lhe valeu uma vida de pobreza, quando não escárnio, ao contrário de vários dos seus contemporâneos, menos ciosos da identidade artística e mais aferrados à cultura de massa. Como no poema de Frost, Almada escolheu, de dois caminhos, o mais duro e árduo e isso fez toda a diferença. Mas teve também um preço.
No prefácio, José Manuel dos Santos diz, com muito acerto, que «este é um livro que desfaz a nossa falta dele», formulação brilhante para explicar uma obra que recupera quarenta anos de dedicação de Almada Negreiros aos painéis do Museu Nacional da Arte Antiga e aos primórdios de uma escola portuguesa de pintura. Através de Valdemar, confidente e discípulo, Almada fala dos «Painéis das Janelas Verdes como se os tivesse visto pintar.»  Talvez até mais: «Como se ele, muito antes dele, os tivesse pintado.»
Aqui figuram, para memória histórica, as premissas do pensamento de Almada Negreiros. Entendendo os painéis como expressão máxima de uma escola primitiva de pintura portuguesa que nada deveria ao Gama navegador e ao Camões lírico, Almada recusa qualquer outro documento de suporte. Os painéis são o único documento que lhe interessa, início e meta da investigação. Das relações geométricas entre tábuas, extrai conclusões controversas, mas nem por isso dispiciendas: é ele que encontra a ordem certa do políptico como hoje o conhecemos, organizando os painéis em função dos ladrilhos do chão; é ele também que sugere que os seis painéis fazem parte de um conjunto mais amplo de 15 tábuas, duas das quais perdidas e as restantes dispersas, que deveriam figurar na Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha, destino histórico da obra.
Valdemar não esquece que, por estas ousadias, Almada foi duramente vergastado pela crítica. Por imperativo ético, figuram também no livro as controvérsias com José de Bragança, cujo zénite redundou numa cena de pancadaria à porta da Brasileira. As crónicas zombeteiras de Leitão de Barros, o Barros da moral sinuosa e consciência artística volátil. As críticas mordazes de António Soares, talvez as mais dolorosas e pessoais. A célebre votação na Junta de Educação Nacional, que validou em 1940 a proposta de organização da obra-prima de acordo com a premissa de Almada (mas com voto contra de João Couto), depois de 14 anos de lutas e conflitos insanáveis. As caricaturas de Valença sobre a polémica intelectual. E até o suicídio trágico de Henrique Loureiro, «ludibriado por um documento falso, introduzido num códice da Biblioteca Nacional».
O miolo do livro é constituído pelas oito entrevistas que Almada concedeu a António Valdemar e ao Diário de Notícias na Primavera/Verão de 1960 – esforço singular de divulgação do «trabalho de uma vida», só publicado por inegável cumplicidade entre entrevistador e entrevistado e benevolência da direcção do jornal (Augusto de Castro) e da coordenadora do suplemento de Arte & Letras (Natércia Freire). Um nono trabalho, datado de 1963 e até aqui inédito, empresta valor acrescentado ao esforço compilativo.
Por vezes, em esforços semelhantes, o biógrafo não evita o endeusamento do biografado. Não é o caso aqui. Valdemar não esconde os deslizes de Almada, nem ignora o supremo acto de derrota de 1966, quando Almada, o iconoclasta, Almada, o anti-Cristo, Almada, o indefínivel, se ajoelhou perante a Academia Nacional das Belas-Artes e aceitou o título de sócio honorário por aclamação e unanimidade. Como Pessoa zombou um dia de Marinetti, o escritor italiano que zurzia na elite institucional até aceitar a «ribalta da Cave Velha», também Almada se vergou ao tilintar do metal da comenda. 
       Por cansaço, talvez. Mas vergou.

Valdemar, António. Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo. Lisboa, Assírio & Alvim: 2015. 222pp.
Almada em caricatura de Gomes Ferreira, Sempre Fixe, 17 de Dezembro de 1958
(a partir de microfilme da Biblioteca Nacional) 
Um resquício da controvérsia em 1931: caricatura de José de Figueiredo, primeiro director do MNAA, por  Francisco Valença, Sempre Fixe, 1931
(a partir de arquivo da Hemeroteca Digital)

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