sexta-feira, maio 29, 2015

Desafio aceite



Declaração de interesses: sou amigo, colega, leitor e admirador de Rogério Santos de quem fui aluno e orientando.
Deixo aqui a recensão de que o meu livro foi alvo, não só porque ela reflecte o cuidado habitual do autor do Indústrias Culturais em criticar com substância e método, mas também pelas pistas e sugestões que o texto encerra.
Ao primeiro desafio, adiro com entusiasmo — nas próximas semanas, colmatarei a falha e narrarei um episódio formidável de uma mulher-jornalista desconhecida. Estava guardado para o momento em que conseguisse confirmar a data de óbito da pessoa em causa, mas, desafiado, acelerarei. Ao segundo, já não está nas minhas mãos. Mas espero novidades nessa frente. Com uma vénia agradecida ao autor.

quinta-feira, maio 28, 2015

Dos linces, dos homens e de um fotógrafo



Fartamo-nos de sentenciar que acabou o tempo do jornalismo de investigação. Que o tempo de pesquisa, processamento, reflexão e publicação ou difusão já lá vai. «Jornalismo imediato», prega o spot de uma televisão. Não é um diagnóstico vão. Ele é válido para quase todos os jornalistas e para quase todos os órgãos de comunicação que conheço – por motivos válidos e dificilmente removíveis, entenda-se. Mas eu conheço pelo menos um tipo com um brio invulgar.
A reportagem que publicamos amanhã sobre o lince-ibérico poderia ter sido concluída em Dezembro, com a libertação simbólica dos primeiros linces num recinto controlado. Ou em Outubro de 2014 quando as notícias sobre o sucesso de reprodução e sobrevivência em cativeiro eram muitíssimo animadoras. Ou mesmo em Março deste ano quando as primeiras libertações de animais em ambiente totalmente selvagem tiveram lugar. Para o Luís Quinta, faltava mais uma imagem. Mais um dado.
Perturbou metade da população da serra de Monchique em busca de informação, de rumores de avistamento. Foi para Vila Nova de Milfontes há mais de dois anos e descobriu um lince solitário, conhecido e tolerado por caçadores e população local, mas bem fora da área onde era suposto viver. Uma espécie de Tom Sawyer entre os linces, portanto. O Luís chateou coleccionadores privados que guardavam exemplares de linces caçados há décadas [num caso, um lince quase contemporâneo do 5 de Outubro de 1910]. Pediu dados à equipa de monitorização. Esperou por autorizações. Obteve dados inéditos sobre movimentos dos linces. Esta era uma das histórias que o Luís não queria falhar. Queria contá-la sem hipérboles. Só os factos – dados de conservação, ameaças reais, desafios de investigação, incógnitas.
Há fotografias na reportagem que publicamos amanhã que demoraram semanas a preparar. Há uma, particularmente deliciosa, na qual o Luís juntou uma imagem de câmara accionada por controlo remoto com o vigilante que tem a missão de verificar todos os dias os vultos que possam ter sido captados fortuitamente por esses dispositivos. Foi ele que, numa bela manhã de 2013, encontrou uma imagem inesperadamente bela na memória do equipamento. Teria sido tão fácil fotografar só o vigilante. Ou um vigilante. Ou publicar só a imagem a preto e branco do animal surpreendido naquele instantâneo fantasmagórico. Nenhuma contaria tão bem a nossa história como aquela que o Luís preparou e obteve (Não a mostro de propósito para vos forçar a procurá-la na revista!).
O jornalista Baptista-Bastos escreveu certa vez, no final de uma reportagem: «Ouvi dizer, aqui há muitos anos, que uma história começa quando os outros se surpreendem.» Vejam amanhã as fotografias do Luís Quinta e surpreendam-se. Então, sim, espero que estejam prontos para a história.

terça-feira, maio 26, 2015

Recauchutagem e empastelamento

Arquivo da Biblioteca Nacional do Brasil. Projecto Jornais Extintos


[Crónicas hospitalares] Encostado à boxe para recauchutagem da máquina, encontrei, em leituras improváveis, um dos mais fenomenais empastelamentos da imprensa lusófona. O pastel, ou empastelamento, era o pesadelo dos tipógrafos — a junção inadvertida de dois textos diferentes. Aconteceu em 1908 na Gazeta de São João da Boavista, Brasil. Noticiava-se a partida para o Rio de um médico estimado em Goiás e a notícia foi poluída pelo anúncio de um certame zootécnico marcado por um porco de dimensões generosas. Transcrevo:
«Parte hoje para o Rio de Janeiro, onde demorar-se-á alguns meses, o nosso querido amigo, dr. José da Silva Mattos.
É um dos melhores exemplos de suínos que temos visto, attingindo o seu peso, caso entre nós nunca visto, a 168 kilogrammos.
Os seus numerosos amigos, querendo demonstrar quão sensível lhes será a ausência do estimado clínico que vae remetido para a Exposição Nacional onde certamente ganhará um dos prémios destinados a animais do ceva, demonstrando os cuidados que dispensava com sua carinhosa presença aos seus enfermos, attendendo a qualquer hora do dia ou da noite os chamados por maior que enche de orgulho os criadores goyanos certos de que esse representante da zootechina do município na Capital attestará o adiantamento de operoso clínico que deixa fundas saudades entre nós com sua retirada, felizmente não longa.
Teremos a maior satisfação e prazer em vel-o esquartejado, vendido a peso seu toucinho dando razoável e compensador lucro a todos os seus amigos.»

Ponto de partida: Memórias de um Repórter, Tomé Vieira, Lisboa, s/ data.

quinta-feira, maio 21, 2015

Com a devida vénia



Associado, no mesmo texto de A BOLA, a dois monstros do jornalismo português e do Diário Popular, Baptista-Bastos e Aurélio Márcio, não posso deixar de executar uma vénia respeitosa ao generoso António Simões por esta recensão formidável do Parem as Máquinas publicada no jornal de hoje.

sábado, maio 16, 2015

Sessão de lançamento [fotos]

Faltam palavras para exprimir o meu agradecimento. Ficam as imagens, captadas no Salão Nobre da Casa da Imprensa em reportagem fotográfica do Xavier. Muito obrigado a todos!
























sexta-feira, maio 08, 2015

Oscar Mascarenhas num texto comovente de Antunes Ferreira


Toalha de banho por mor dos picantes muito picantes
Por Antunes Ferreira
Era o goês que conheci – e conheci e conheço muitos – que mais suava quando comia picantes muito picantes A expressão era dele. Além de camadas de profissão éramos Amigos. A minha mulher Raquel conhecia-o desde que ele tinha quatro anos. Em Goa, obviamente. A família, no entanto, era oriunda de Damão.
Quando vinha almoçar ou jantar a nossa casa o ritual repetia-se: a Raquel ia buscar uma toalha de banho para ele enrolar a cabeça e o tronco molhados de tanto suor. Um tipo pachola, repentista, irónico, por vezes mesmo acintoso, mas era um Grande Jornalista.
Falar dos seus muitos méritos profissionais é despiciendo. Já muitos o fizeram e certamente muito melhor do que eu faria. Aqui apenas tento  falar dos seus contactos humanos. Vejam só. Um dia em nossa casa no momento à Lapa almoçavam três casais. O Mário Ventura Henriques e a sua mulher Eglantina, o Oscar (sem acento) e a Natal, a Raquel e eu.
Foi um almoço para sempre recordar, como reza o anúncio. A malta comia (muito), bebia (muito) e o maestro ela ele. O Mário esbugalhou os olhos quando viu a toalha de banho. E ele imperturbável: nunca viste um gajo a comer picantes muito picantes? A partir de agora já podes dizer que viste… O Ventura Henriques engoliu em seco, perdão, molhado e continuou a conversa entremeada das comidas e bebidas.
Entrementes os meus filhos vieram à mesa para abastecer os seus pratos e ficaram como se não fosse nada com eles; já estavam habituados à encenação, já estavam habituados à toalha de banho, já estavam habituados com ele. Então meus meninos (o Miguel já tinha 20 anos,  já andava no Instituto Superior de Ecomimia e Finanças, o Paul, com 18, acabara de entrar em Sociologia e o Luís Carlos, o mais novo estava a preparar-se para Direito mas para ele eram meninos) como vão de namoradas? Vá, não se encolham que os papás não ouvem; desembuchem…
A Eglantina disse sotto vocce, então não perguntas pelos estudos? E ele: não preciso; sendo filhos da minha prima Raquel têm de ser bons alunos. Já o pai (que era eu, suponho) para ser burro só lhe faltam as penas!...  Brincava. Caímos na galhofa. Ele era assim. No entanto era muito sensível e escondia a sensibilidade pela ironia, sem dar conta sobretudo aos outros que tinha dificuldades nesse jogo de sombras. A Natal conhecia-o bem e boca calada prudentemente.
Quando terminou o repasto  o tipo avisou: não comam mais! A Raquel e o Antunes Ferreira têm para jantar outro casal amigo e vão aproveitar estes restos para dar a esse casal. Aí ninguém pôde retrair o riso. As gargalhadas saíram em catadupas. E fomo-nos ao café (que não eu porque não o tomo) e aos uísques que eu tinha em quantidades muito apreciáveis.
E pronto, era para mim assim o Oscar (sem acento) e no meio do desgosto – chegaram-me as lágrimas aos olhos quando um e-mail me deu a notícia – bom Amigo, camarada, terno e sensível embora estas qualidades fossem por ele bem encapotadas. Só uma vez o vi eufórico: quando a sua Carol terminou o mestrado, o que enunciou a todas as Amigas e todos os Amigos, sem esconder o orgulho que tinha pela filha Carolina, a menina dos seus olhos.
Mas, podem ter a certeza de que o Oscar (sem acento) era um Grande Jornalista.

quinta-feira, maio 07, 2015

Pré-publicação, Sábado



A edição de 7 de Maio da revista Sábado tem a amabilidade de fazer a pré-publicação de parte do primeiro capna semana em cursosta.u agradecimento sincero ítulo do meu Parem as Máquinas!, publicado na semana em curso.
Aqui fica a nota do meu agradecimento sincero à rapaziada da revista.

terça-feira, maio 05, 2015

Sessão de lançamento marcada



Está marcada e conto convosco. No dia 14 de Maio, pelas 18h30, no auditório da Casa da Imprensa (Rua da Horta Seca, ao Largo de Camões), o jornalista João Paulo Cotrim apresentará o Parem as Máquinas!
Espero ver-vos por lá!

segunda-feira, maio 04, 2015

Parem as Máquinas! (2)


É já na quarta-feira que o livro Parem as Máquinas! chega às livrarias. Convenientemente, o Presidente da República não estará em Portugal à data do lançamento, pois partiu para a Noruega em visita de Estado. Habituado como estou a ler nas entrelinhas – capacidade muito comum entre os míopes – é natural que os dois actos estejam relacionados. Enfim: Cavaco Silva não estará, mas os leitores do blogue compensarão a ausência protocolar com idêntica dignidade e menos episódios vagais.
Antecipo hoje o sumário da obra e ameaço desde já com uma sessão de lançamento na próxima semana em Lisboa (darei mais pormenores nos próximos dias). Posso desde já confirmar que a apresentação pública do livro será conduzida numa língua indo-europeia, mas hesitamos entre uma língua morta e uma língua viperina.
Está anunciado, rapaziada! Unicuĭque suum, como diria Lutero. A cada um, o seu [exemplar].

segunda-feira, abril 27, 2015

Parem as Máquinas!

Fica mal ao autor elogiar a sua própria obra, embora não seja caso virgem na nossa imprensa. De todo o modo, a obra é tal maneira estupenda que os elogios escritos não lhe fariam justiça [será o único elogio, prometo!].
À medida que se aproxima o dia 6 Maio, data marcada para o início da distribuição de Parem as Máquinas! nas livrarias, desaparece o pudor. E o que se perde em pudor ganha-se em descaramento, atitude esta que, não tendo o mesmo charme, não deixa de ser saudável – pelo menos, para o autor e seus herdeiros.
Bom... Ao terceiro parágrafo, o leitor do Ecosfera descobre que não está perante um crítico literário do calibre de João Gaspar Simões, mas em contrapartida o autor destas linhas permanece temporariamente vivo, o que constitui uma substantiva vantagem sobre o crítico figueirense. Sobretudo para o próprio.
Ao mesmo tempo, fica finalmente explícito o motivo pelo qual 23 textos que figuraram em tempos neste espaço deixaram de estar acessíveis. Ainda por cima, eram os melhores [último elogio, prometo!] Dignos de Pulitzer [ahem!]. Não é por acaso que o nome do autor constitui um anagrama de Joseph Pulitzer, se lhe mudarmos praticamente todas as letras.
Por amável convite da Editora Parsifal, reformulei crónicas que tinham sido pensadas para a Internet e com o propósito singelo de não deixar morrer episódios memoráveis do nosso jornalismo impresso e de figuras ímpares como Urbano Carrasco ou Fernando Assis Pacheco. Após reprocessamento (nalguns casos, extenso), reformulação e edição, esses textos ganharão agora a dignidade da letra impressa.
Não vos vou maçar (ainda) com a descrição da obra, do seu sumário e dos seus objectivos. Permitam-me nesta fase – e sem brincadeira – o meu agradecimento sincero às muitas personalidades que contribuíram para a investigação, esclarecendo dúvidas e erros, e àquelas que me incitaram a prosseguir com um incentivo ocasional que, muitas vezes, neste universo da Internet repleto de insultos e meias-verdades, constituiu o apoio necessário para que as baterias voltassem a carregar.
Ao Armando Baptista-Bastos, que aceitou prefaciar esta obra e que nela deixou elogios que me fizeram corar; ao Marcelo Teixeira, que viu no Ecosfera um potencial maior do que eu imaginara; ao Fernando António Correia, que lançou as bases para a nossa parceria na JJ; aos ilustradores Luís Taklim e Miguel Alves; ao Joaquim Vieira; aos professores João Luís Cardoso e Victor Hugo Forjaz; ao historiador José Constantino Costa; ao João Paulo Cotrim; ao Dr. Ricardo António Alves; ao António Candeias; ao saudoso José Casanova; ao Alexandre Pereira; ao Dr. João Esteves da Silva; ao Alexandre Vaz; ao Dr. Paulo Tremoceiro; ao Eduardo Gageiro e ao José Goulão. E, claro, à Ana e ao Xavier.
Como daqui se infere, fico em dívida com muita gente e por muito tempo. E ainda faltam os leitores do Ecosfera, para os quais deixo a última palavra: obrigado!

sábado, abril 18, 2015

O repórter que desvendou acidentalmente o homicídio de Monsanto


Há um velho adágio no jornalismo americano: «If it bleeds, it leads!» [«Se há sangue, vai para a abertura!», em tradução livre]. É antiga a tentação jornalística de desvendar crimes antes (ou apesar) da polícia. Há algumas semanas, li uma descrição sumária do caso saboroso que vou contar. Não incluía datas, nem pistas concretas, o que constituiu um martírio para descobrir a respectiva data, mas creio que valeu a pena. Antigo e esquecido, este caso de 1893 do célebre Esculápio contraria a moralidade dominante sobre a alegada obsessão moderna com o noticiário criminal. Desde que há jornais, há crimes escabrosos nas notícias. Como este.

Esculápio em caricatura de Arnaldo Ressano Garcia, Álbum (1933)
(Estampa da colecção da Biblioteca Nacional)
A notícia chega a Lisboa pela noite dentro e circula como um vírus. Três caçadores (João Ventura e os irmãos Alfredo e Manuel da Silva) descobriram um crime terrível na serra de Monsanto na tarde de quarta-feira, 1 de Fevereiro de 1893. «Naquela tenebrosa região dos covões da Pimenteira, verdadeiro covil de malandrins da pior espécie, onde a polícia poucas vezes vai mas donde sempre faz farta colheita quando se resolve a visitá-lo», escreverá mais tarde Esculápio, os três homens à cata de coelhos foram alertados pelos latidos invulgares dos cães. Vão armados apenas com paus, pelo que se aproximam a medo da abertura de uma gruta natural (uma furna) na serra. Os cães enlouquecem no interior, e um dos irmãos decide rastejar pela abertura e entrar na galeria, iluminada por uma clarabóia natural. A visão horrenda deixa-o sem palavras. É o corpo de uma mulher, «regularmente formosa, clara», ensanguentada e inerte. As paredes estão salpicadas de sangue.
A Quinta da Pimenteira antes da florestação de Monsanto, na década de 1930
(Arquivo de O Século, Arquivo Nacional da Torre do Tombo) 
A notícia circula e chega ao coração de Lisboa, exagerada e distorcida pela voz popular, mas suficiente para o repórter Esculápio, noctívago inveterado, decidir partir para Monsanto. Aproveita a companhia dos guardas da esquadra dos Terramotos, no Casal Ventoso, e viaja à luz de lanternas. Na escuridão, pouco consegue ver, mas bebe o testemunho dos caçadores e reproduz a notícia no número do dia seguinte de A Vanguarda, o jornal republicano para o qual trabalha há dois anos. Desconhece-se a identidade da mulher «de cabelos pretos empastados de sangue e desgrenhados, estatura mais do que mediana», assassinada há dois ou três dias, segundo «opiniou o Sr. Dr. Schindler», que observou o corpo, mas não lhe pôde mexer por exigências protocolares. A frescura do local atrasara a decomposição.
Esculápio é um estrela em ascensão. Começara na Pátria em 1891 e ali ganhara o respeito dos republicanos pela sua insolência poética, expressa nas gazetilhas que o jornal publica e que os ardinas repetem. Com o fecho do jornal, em Janeiro de 1891, ficou escassas semanas desempregado. Alves Correia, farmacêutico tornado jornalista, dirige um novo diário, A Vanguarda, desde que o governo mandou encerrar Os Debates, na sequência de críticas violentas à gestão portuguesa do Ultimato inglês. Acolhe o jovem repórter como revisor, cargo no qual este só se mantém durante três semanas, integrando a partir de então a redacção.
Esculápio, Arquivo do autor
Divertido, encanta os colegas e faz vender jornais. Tomam-no como médico apesar do seu escasso treino em Medicina. Ficou lendária, aliás, a sua partida ao contínuo, «um pobre rapaz, vindo das berças, [que] bebia os ares por mim», conta em Memórias. «Ouvindo dizer que eu andava nos preparatórios de medicina, veio consultar-me porque padecia de uma doença secreta, fazendo com que eu, que tomei o caso por troça, lhe receitasse uma untura de água-rás e que se besuntasse muito bem.» No dia seguinte, a redacção parecia um cenário de guerra, com cadeiras tombadas, mesas reviradas e um remoinho de papéis. «O estúpido tomara a receita à letra e fartara-se de andar aos pinotes. Mas o caso é que o medicamento lhe fez tão bem que ainda há pouco, quando me encontrava, se desbarretava, tratando-me por senhor doutor
       Há um certo ar de boémia na redacção da Vanguarda. Anos mais tarde, numa edição do Mundo Gráfico de 1945, recordou-se uma velha partida pregada pela redacção ao administrador Eduardo José Gaspar, «uma bela alma, simples, ingénua (…)», que vivia o desgosto de ser de baixa estatura. Um dia, o jornalista Gonçalves Neves entra na redacção, olha-o atentamente e diz-lhe muito admirado:
       – Já reparaste numa coisa? Desconfio que estás a crescer…
       – Estou agora – respondeu tristemente Gaspar.
        Todos os dias, os membros da redacção iam-lhe à bengala e limavam meio centímetro na ponteira, «de modo que o pobre homem chegou a convencer-se que tinha crescido, visto já andar de lado para se apoiar».
       – Rapazes, vocês têm razão. Afinal, estou mais alto!
       Apesar destes divertimentos pueris, a década é difícil para o frágil jornal republicano. Esculápio cai no goto dos camaradas de redacção. O veterano Heliodoro Salgado («anticlerical, irredutível e esturrado», como o descreveu Esculápio) fora detido por quatro meses em 1891 por delito de opinião. Segue-se Alves Correia, o director, encarcerado por seis meses no Limoeiro. Travam-se duelos ferozes de palavras e sabres. No Verão de 1892, o próprio Esculápio fora querelado (o termo da época para o processo por difamação) pelo conde de Burnay, que não apreciara as estrofes da gazetilha de 19 de Julho:
«Ele que sempre foi um intrujão /
Qual outro lavrador do Poceirão /
E é capaz de ser feito deputado /
que ele é capaz de tudo, o condenado! /
Nesses tempos de bárbaras nações /
pregavam-se nas cruzes os ladrões; /
Hoje em dia, no século das Luzes, /
ao peito dos ladrões, pregam as cruzes!»

Falta a Esculápio, porém, a respeitabilidade dos repórteres. E essa resultará deste caso.

UM OVO ESTRAGADO
Regressado de Monsanto, Esculápio alicia Albino Sarmento, camarada do Diário de Notícias e funcionário da Polícia Judiciária, para nova visita no dia seguinte ao local do crime mal os primeiros raios de Sol caiam sobre a cidade. Olha de relance para o relógio e decide não dormir. Parte para o Largo de São Cristóvão, onde tem «uns amores conquistados» e passa a noite a cear e a… foliar. À saída, já na alvorada, passa por um «quintalório» com roupa estendida e um «avental de chita, que ondeando ao vento, veio derrubar-me o chapéu, motivo porque o fixei».
Corre para a redacção de A Vanguarda, no número 5 da Rua da Trindade, para recolher papel e, marchando em direcção ao Largo de Camões, ponto de encontro com Sarmento, «como quer, porém, que a ceia tivesse sido pouca e a fome me alanceasse, entrei na mercearia do Viana, à esquina da Rua do Norte, e pedi dois ovos. Era meu costume, quando a fome me atezanava (sic) e não havia tempo para demoras, engolir dois ovos crus, para o que lhes fazia com um alfinete dois buracos, chupando por um deles».
À medida que o trem que transporta os dois repórteres para as furnas vence o caminho, Esculápio dá conta de que um dos ovos há muito que não tinha contacto com a galinha poedeira. Debalde: o conteúdo do ovo podre já fermentava no estômago do repórter. Chegou a Monsanto em tal estado que a dupla de reportagem se transformou no esforço de um só homem. Enquanto Esculápio vomitava e se contorcia numa maca improvisada à entrada do Covão do Gesso, o local do crime, o camarada do Diário de Notícias recolhia depoimentos de todas as testemunhas, prometendo-lhe o tradicional caldinho, o resumo para que o colega não falhasse a notícia.
A edição de A Vanguarda de 4 de Fevereiro de 1893 que desvenda a identidade da vítima
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Nas ânsias da agonia, «terrivelmente indisposto, larguei a vomitar e, perdendo o equilíbrio nas penhas onde me tinham colocado, rebolei por ali abaixo e vim bater com as ventas no cadáver, sendo então que me acudiram e me levaram em braços de novo para o meu poiso». Abriu momentaneamente os olhos e, «coincidência extraordinária e misteriosa que então se deu, e que parece uma coisa inacreditável e romântica preparada ad hoc para dar um desfecho a esta pequena narrativa», vê um avental de chita exactamente igual ao que lhe atirara o chapéu ao chão na véspera, bem longe dali.
A vítima em gravura da época. Diário Ilustrado, 4 de Fevereiro de 1893
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
DE PISTA EM PISTA
Transporte-se o leitor, se conseguir, para o final do século XIX. Os jornais ainda não publicam fotografias – só gravuras. Em França, o químico Coulier já descobriu que os vapores de iodo podem revelar impressões digitais numa folha de papel e o argentino-croata Vucetich tornou-se, em 1892, o primeiro a testar o seu uso na investigação forense. Em Portugal, claro está, ninguém tem isso em conta.
A polícia e o Governo Civil de Lisboa lançam pois o único recurso possível para identificar a vítima: trazem à furna de Monsanto centenas de pessoas. O Dr. Schindler coloca a vítima, «mais feia do que bonita», numa «imunda e arqueológica maca» e lava-lhe a cara ensanguentada. Ninguém reconhece a mulher, apesar de um sinal distintivo: a vítima era quase cega do olho esquerdo.
Levado o corpo para o cemitério dos Prazeres, repete-se a sessão macabra nos dias seguintes. Milhares de pessoas desfilam perante o corpo mutilado. Um bêbado comporta-se indevidamente e é preso pela polícia, que o salva da multidão, disposta a linchá-lo logo ali. Os jornais não poupam nos detalhes horrendos: «Ao Sr. Veiga, foi entregue um frasco contendo a vagina que os médicos extraíram para amanhã ser verificado pelo Sr. Dr. Pestana, do Hospital Real de São José, se a pobre rapariga foi violentada pelo malvado», escreve-se. As diligências básicas não parecem surtir efeito. Mesmo o monograma S.G. bordado no cós a linha vermelha revela-se inútil. Quem será a vítima?
Esculápio possui uma pista. Já restabelecido da indigestão, «depois de ter novamente vomitado os farrapos (…) e graças a uma garrafinha de água mineral», dirige-se a São Cristóvão. Volta ao pátio onde viu o avental a flutuar, faz perguntas. Descobre que há quatro dias que ninguém sabe de Maria dos Anjos, a mulher que ali vive com um soldado da guarda municipal. É uma pista sólida, mas Esculápio tem um problema: desde 21 de Dezembro do ano anterior que A Vanguarda anda de candeias às avessas com a polícia. O jornal acusou as esquadras de Lisboa de «comércio de notícias entre a polícia judiciária e certas empresas jornalísticas, que distribuem ordenados a chefes, cabos e guardas, como pagamento de notícias de casos que lhes passam pelas mãos, com manifesto prejuízo de quase todos os jornais da capital». Disse mais, aliás, o jornal de Alves Correia: «Se os ordenados da polícia judiciária são mesquinhos e exíguos, a culpa não é da imprensa (…) mas tornamos a dizer que publicaremos os nomes dos empregados da polícia nestas circunstâncias que, diga-se, são quase todos, pois que possuímos dados curiosos e interessantes sobre este escândalo inaudito.» Os repórteres de A Vanguarda não são propriamente populares desde então nos meios policiais.
«O comércio de notícias na polícia de Lisboa», A Vanguarda, 21 de Dezembro de 1892
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Esculápio vai, pois, por outro caminho. Aborda duas vizinhas, Bárbara e Ermelinda da Conceição, mãe e filha, com as suas suspeitas e pede-lhes que se dirijam aos Prazeres para reconhecimento de Maria dos Anjos. Serão elas assim a confirmar a suspeita.
No dia 4, Lisboa respira de alívio: foi identificada a vítima e preso o marido, Thomaz Ribeiro, de 21 anos, «de fisionomia pouco antipática», natural de São Miguel das Caldas, Guimarães. É o soldado n.º 78 da 1.ª companhia da Guarda Municipal. Cega do olho esquerdo, Maria dos Anjos Novais, 28 anos, é a sua esposa.
O assassino em gravura de época. Diário Ilustrado, 5 de Fevereiro de 1893
(Arquivo da Biblioteca Nacional)
Nos dias seguintes, precipita-se uma torrente de pormenores. As provas circunstanciais reforçam a culpa: o sabre do guarda ajusta-se às feridas. No Quartel do Carmo, no armário do guarda, há roupa ensanguentada e a história que ele fabricou e contou aos vizinhos (Maria teria morrido no fim-de-semana anterior no hospital) não se confirma. A Vanguarda procede, nos dias seguintes, a um metódico assassínio de carácter, imputando a Thomaz Ribeiro a morte da sua primeira mulher, bem como agressões várias em Guimarães. Thomaz queixa-se, dias depois, de que nenhum advogado se prontificou a defendê-lo, mas acaba por quebrar. Confessa a culpa. Assassinara a mulher por ter descoberto que «ela fora desflorada pelo cunhado antes das núpcias».
A cidade bebe todos os pormenores sórdidos do caso. Descobrem-se namoricos do guarda com outras raparigas, às quais prometeu consórcio mal se tornasse novamente solteiro. À porta do Quartel do Carmo, vendem-se folhas volantes com versos sobre o caso. Um homem é detido por encenar um teatro de marionetas que toscamente reconstitui os acontecimentos de Monsanto. No interior, vigiado por três sentinelas (mal, como se verá de seguida), Thomaz «come e dorme como um justo», mas enfurece-se quando, na presença de um juiz, lhe é dito que o crime foi premeditado: «Se pudesse, também lhes [às testemunhas que o alegam] pregava dois murros nas ventas, que lhes haviam de saltar as cabeças pelo ar!», explode.
No dia 20 de Fevereiro, o guarda suicida-se na própria cela, envenenado por ingestão de fósforo, que diluíra num púcaro «que, com uma bilha, lhe tinham consentido na prisão». Acometido de vómitos e espasmos, «de tal forma sofria que soltava verdadeiros urros (…), encolhendo o polegar entre os outros dedos e parecendo agredir um fantasma que se lhe apresentava diante dos olhos (…), com o corpo recurvado como num enroscar de serpente». Por singular coincidência, notou o repórter de serviço, ficou com o olho esquerdo «semi-aberto, como a pobre esposa que, crivada de feridas, foi encontrada no covão de Monsanto».

PRÉMIO, SANÇÃO E PROFANAÇÃO
A morte de Thomaz Ribeiro poupou ao sistema criminal múltiplas diligências  mas não impediu um último acto macabro. Enquanto Alexandre Bastos, sobrinho do cirurgião-chefe do Hospital da Marinha, fotografava diligentemente o cadáver do homicida (onde andarão essas fotografias?), o Dr. Silva Telles, eminente especialista português, solicitou ao delegado de saúde autorização para… serrar a cabeça de Thomaz Ribeiro. Leu bem: Telles era especialista em frenologia, a “ciência” que sugeria a associação entre comportamentos morais e a morfologia cerebral. Assim, com alguma pompa, «no terraço do hospital de marinha, foi colocada uma mesa, sobre a qual foi exposta uma bacia de arame com o fundo para o ar. Em cima dela, foi posta a massa encefálica». Para as fotografias, foi readaptado o «tampo do cérebro» já serrado, depois coberto «com um barrete dos que ordinariamente servem aos doentes». Completou-se assim o exame, embora se desconheçam as “conclusões”.
O tema, porém, manteve-se na agenda científica portuguesa. Um dossier de primeira página de O Século em 21 de Dezembro de 1902 sobre a «História da Antropologia» consagrava vasto destaque aos instrumentos de medição da capacidade craniana, como o compasso de espessura ou o craniâmetro parietal. É verdade que o texto já apontava o dedo ao desvio eugénico e à politização da antropologia como braço legítimo dos defensores da escravatura, mas, em simultâneo, sublinhava que «a antropologia aplicada ao caso particular dos criminosos, a antropologia criminal, tem contribuído poderosamente para introduzir profundas modificações no direito penal».
O Século, 21 de Dezembro de 1902
A partir de microfilme da Biblioteca Nacional 


Regressemos ao mundo dos jornais. Na Rua da Trindade, Esculápio recebeu os justos cumprimentos de Alves Correia e de todos os camaradas de redacção. «Foi a minha primeira vitória jornalística», escreveu mais tarde nas suas memórias. Por especial deferência, no dia 14 de Fevereiro, a sua gazetilha ocupou até o lugar do editorial de fundo do director, na primeira página. Mas foi sol de pouca dura.
Seguindo o exemplo do governo que tanto criticava, Alves Correia, «a pretexto de que tinha de pagar o tipo novo que comprara na Alemanha para melhorar a folha, reduziu-nos a todos o ordenado, com a promessa de no-lo aumentar e restituir o que nos pedia a título de empréstimo mal o jornal subisse de tiragem». Os meses passaram. A Vanguarda prosperou, mas a reposição salarial nunca se fez. Fez-se greve.  Os irmãos de armas zangaram-se.
Esculápio acabou por aceitar uma oferta de O Século, onde viveu outras aventuras que talvez aqui ainda venha a contar. Mas nunca esqueceu o dia em que descobriu, por acidente, a identidade da vítima das furnas de Monsanto.

sexta-feira, abril 17, 2015

Viagens pagãs


Saiu mais um livro de Fernando Dacosta e basta isso como motivo de júbilo. Dacosta sempre foi um autor transfronteiriço, saltitando continuamente na linha que separa a reportagem da literatura. Como o malabarista, mantém no ar várias bolas em simultâneo, manobrando os sentimentos de quem o lê. Viagens Pagãs é mais um belíssimo exemplo.
Note-se a ironia contínua de «Um carocha no Brasil», crónica tremenda, traçada a cores vivas e em dois planos diferentes – em pano de fundo, Dacosta é repórter, descrevendo, como poucos fizeram, o exílio de Marcello Caetano no Brasil; em primeiro plano, o autor acompanha Agustina Bessa-Luís a uma feira literária em Vera Cruz. Tão depressa Dacosta faz-nos mergulhar na solidão dos últimos dias de Marcello, sozinho, doente, angustiado e esquecido, como é capaz de cortar o tema seguinte a golpes de sabre, citando Franco Nogueira e a sua leitura fria do marcelismo. «“Era o homem das primaveras frustradas”, sibilar-me-á Franco Nogueira. “Deram todas em borrasca, em calamidade, como era aliás de prever.”»
Agustina é a personagem útil, que nos traz de volta à terra e ao mundo terreno. Com ela (ou através dela), Dacosta reflecte. Faz-nos rir. A ideia do túmulo do genial e provocador Nelson Rodrigues a escassos metros do túmulo de Marcello Caetano constitui a última e duradoura provação do derradeiro Presidente do Conselho do Estado Novo. Ou uma longa dissertação de Agustina sobre a mulher e a sua força de vagabundagem cortada depois pela insistência da escritora para que Dacosta a acompanhe às boutiques de luxo, onde fica encantada por ser reconhecida «por uma caixeirinha estudante de literatura».
Viagens Pagãs (Parsifal, 2015) reúne sete crónicas – um documento comovente sobre a adolescência vivida no Douro vinhateiro, uma reportagem fenomenal sobre a ilha do Corvo, microcosmo especial de portugalidade insular e loucura sã, uma crónica mais curta sobre a vivência mineira, uma reflexão notável sobre Marrocos e a história portuguesa no Norte de África e uma viagem de mota por Angola e Moçambique.
Guardo para o fim Um Veleiro no Atlântico, quarta crónica no livro, mas texto-rei na obra. É um exercício de reportagem notável. Uma viagem de barco abortada, supostamente transatlântica, mas que o mar trava em Sagres. Metáfora tremenda deste país sedento de aventura mas carente de razão. Agostinho da Silva é o cicerone a bordo. Embala o leitor entre Teixeira de Pascoais e Teófilo Braga, Mia Couto e Camões. «O último continente onde nos faltava desembarcar era a Europa», ironiza Agostinho.
A viagem e o relato oscilam entre os sonhos de grandeza de dois sonhadores a bordo e um veleiro que não sai da marina por força da borrasca. É Dacosta em estado puro. É motivo para comprar o livro!

quarta-feira, abril 15, 2015

Está para breve!



Seguidores do blogue, leitores ocasionais e visitantes acidentais,
Está para breve a publicação de um livro com 23 crónicas da minha autoria sobre episódios do jornalismo português desde o estertor da monarquia até aos primeiros anos do período democrático pós-revolução de 1974.
Da rábula do papa português ao «homicídio» do sábio Peyradon, da saga de Ferreira de Castro em Dublin às aventuras de Urbano Carrasco nos Açores e em Goa, algumas das histórias mais populares que publiquei neste espaço [e que foram aqui desactivadas] ganharão a dignidade da letra impressa, com a chancela da Parsifal.
Darei novidades em breve. Agradeço o carinho e o entusiasmo de sempre pelo que tenho vindo a publicar no Ecosfera.
Urbano Carrasco nos Capelinhos (1957), em ilustração da Draftmen



quinta-feira, março 26, 2015

As memórias de Letria


Olha-se para a capa com um arrepio. Os tons negros do fundo e a expressão pesarosa do biografado sugerem uma homenagem póstuma, daquelas de que somos pródigos. Credo!
Hesita-se um segundo. Folheia-se.
Causam estranheza os dois prefácios — um do general Eanes e outro de Fernando Dacosta. (Vem à memória a tara de T.S. Elliot com os prefácios). Eanes escreve com uma dívida de gratidão a Letria em sete páginas bonitas, mas de execução militar – de tema em tema, como uma barragem de artilharia. Dacosta é igual a si próprio: seria criativo mesmo se só tivesse um post-it.
Até a introdução da autora produz uma sensação invulgar. Dá ideia de que as memórias de Joaquim Letria, em formato de entrevista, são publicadas... apesar de Letria. Que o jornalista acedeu a contragosto. E, no entanto, aqueles, como eu, que decidem comprar Joaquim Letria, Sem Papas na Língua (Dora Santos Rosa, Âncora, 2014) têm pela frente uma das melhores reflexões sobre o jornalismo das décadas de 1960 a 1980 que tive o prazer de ler.
Com frequência, senti que o livro-entrevista continua, com notável coesão, o trilho aberto por essa obra extraordinária que é Jornalismo: do Ofício à Profissão (Fernando Correia e Carla Baptista, Caminho, 2007), investigação sobre a ruptura profunda produzida nas redacções do final da década de 1950 com a admissão de jornalistas com background universitário e formação política.
Letria parece ganhar alento depois das primeiras perguntas. Percebe que Dora Santos Rosa estudou a sua carreira, sabe do que fala. Com algumas provocações, torna-se bonacheirão e partilha sem reservas. Nalguns casos, como no relato sobre Moisés Tshombé, vai obrigar-me a reescrever, mesmo que ao de leve, um episódio que aqui deixei há alguns meses (aqui). Noutros, notoriamente exagera (posso desmentir, por conhecimento directo, a alegação de que os livros, no Estado Novo, não eram revistos pela Censura; ou que Jorge de Brito tenha sido detido em 1975 sem «ser acusado de coisa nenhuma»). E é altamente controversa a sugestão de que osjornalistas detidos pela PIDE foram-no sempre por actividade política clandestina e não por actividades jornalísticas. Como Letria muito bem diz, percebeu que estava na fase de fazer e dizer o que lhe viesse ao goto, como os malucos. O resultado é uma leitura que flui sem buracos na estrada, como uma única grande conversa.
O jornalista partilha notas preciosas sobre o ambiente do Diário de Lisboa, com destaque para Mário Neves (curiosamente, quase não refere Norberto Lopes). Recupera uma dimensão esquecida de Vítor Direito (pelo menos, para mim, que cresci numa casa onde o seu «De Vez em Quando» no Diário de Lisboa e a sua «Visão Direita» no República eram a primeira rubrica lida todos os dias e onde a sua transformação, ou monstrificação, no «Direito do Correio da Manhã» foi sentida como uma traição). Aborda, sem rancores, a saga da RTP. A fundação de O Jornal, com uma traição à mistura. O Tal & Qual, de boa ou má memória, consoante as semanas (nunca esqueço que o mesmo semanário que revelou a Dona Branca ajustou contas com a direcção de programas da RTP, lançando indecentemente Maria Elisa para a fogueira... Ou para a praia. Enfim, quem se lembra dessa primeira página de 1983 sabe do que falo).
Letria foi Letria: recordou sem papas na língua, contou histórias sem a tradicional discrição portuguesa (com uma excepção, pois não nomeia directamente o judas que motivou a sua saída de O Jornal). Apontou o dedo à instrumentalização política da RTP. Explicou o sucesso original de Tal & Qual com uma fórmula diabolicamente simples: num universo de imprensa estatizada, o jornal comprava histórias a repórteres que não as podiam publicar nos seus órgãos de comunicação. Divertiu-me. No seu relato minucioso, há agora pistas para perceber melhor a evolução do jornalismo português.
Faço votos para que Baptista-Bastos, Fernando Dacosta, Joaquim Furtado, Mário Zambujal e Adelino Gomes vão preparando as suas notas. Meus senhores, chegou a vossa vez!