sexta-feira, março 29, 2013

Ramalho, o Papa, Darwin e o Rei à Espera


(Hesito em incluir esta narrativa no leque de histórias improvisadas do jornalismo português. É verdade que Ramalho Ortigão foi um distinto jornalista e terá sido na redacção de textos para jornais que mais se distinguiu. É verdade também que este caso foi parcialmente filtrado para periódicos portugueses na primeira década do século XX. Mas é inquestionável que, durante a missão vaticana, Ramalho não se sentiu jornalista, nem agiu como tal. Fica, por ora, dentro deste lote. Os leitores dirão de sua justiça).

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O ano era 1901. Passavam doze meses sobre a morte de Eça de Queirós. Os amigos do escritor poveiro esforçavam-se por ajudar a viúva e os filhos, sabendo que Eça, como aliás acontecera durante o tempo em que vivera, não deixara fortuna. Bernardo Pinheiro Correia de Melo, o primeiro conde de Arnoso, um dos membros dos Vencidos da Vida e amigo de infância de Eça e Ramalho Ortigão, pedira na Câmara dos Pares uma pensão para a viúva e para os filhos do escritor, em nome dos serviços prestados à literatura portuguesa. Ramalho, a Ramalhal figura que Eça descrevera em tempos e que com ele colaborara intensamente durante três décadas, arregaçara as mangas e debruçara-se sobre as obras inéditas que Eça deixara quase terminadas. Durante um ano, trabalhou no manuscrito de “A Cidade e as Serras”, deixando-o quase pronto para edição. Havia outros manuscritos na calha, mas, a 28 de Agosto de 1901, o escritor portuense decidiu partir abruptamente para Itália.
A acreditar nas suas palavras, viajou sem agenda, ao sabor do momento, desejoso de beber a cultura artística e religiosa de Milão e Roma, tendo para isso escrito ao conde de Arnoso, secretário particular do rei, para solicitar uma audiência a Dom Carlos I que o dispensasse temporariamente do serviço na Biblioteca da Ajuda. Entre Setembro e Dezembro desse ano, Ramalho viveu na capital italiana, acompanhado de amigos (é identificado, por exemplo, o “amigo Monteverde”, que poderá ser o escultor italiano Giulio Monteverde). Levaria, ou não, uma missão diplomática em mente? Ou, já em Roma, teria sido um improvisado correio diplomático, por necessidade de uma das partes envolvidas? Não se sabe com certeza.
Sabe-se apenas que, certo dia, de surpresa, Henrique O’Connor Martins, encarregado de negócios interino da embaixada portuguesa de Roma (onde esteve, segundo preciosa informação do Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 1896 a 1909) e amigo de Ramalho, pediu em seu nome uma audiência ao papa Leão XIII, através do cardeal Rampola, secretário de Estado da Santa Sé durante este papado.

Henrique O'Connor Martins, em quadro pintado por Sanchez de Barbuda
"Illustração Portuguesa", 1903, n.º 18
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
Revista "Ocidente", n.º 887, 1903
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital)
“A minha surpresa foi tão grande como se as sibilas e os profetas do Juízo Final de Miguel Ângelo acabassem de me anunciar que o próprio Padre Eterno me mandava chamar. Podia lá ser! Eu, velho filho do século, ferrugento racionalista, pobre pecador, discípulo, no último banco, de Spinosa, de Darwin, de Littré, de Auguste Comte, de Renan, antigo entusiasta de Byron, de Hugo, de Carlyle, de Proudhon, de Michelet, de Ruskin, ser assim recebido na paternal intimidade do Santuário pelo sucessor de São Pedro, pelo vigário de Cristo, afigurava-se-me a mais inverosímil anomalia, parecendo tacitamente envolver da minha parte uma deturpação de identidade, uma dissimulação de pessoa, quase uma insídia”, escreveu mais tarde, na “Ilustração Portuguesa”, ao lembrar o caso [grafia corrigida para melhor percepção do texto].
Mas quem era na altura o sucessor de Pedro no Vaticano?

O PAPA LEÃO XIII

De 20 de Fevereiro de 1878 a 20 de Julho de 1903, data da sua morte, o cardeal Vincenzo Pecci, antigo arcebispo de Perugia, foi o papa Leão XIII. Serviu durante 25 anos na cadeira de São Pedro, num período conturbado. Pela primeira vez, a Santa Sé estava confinada às fronteiras do Vaticano na sequência do conflito aberto em Itália com Vítor Emanuel (sogro do “nosso” rei Dom Luís) e depois com o rei Humberto. Como notou Ramalho, “Leão XIII é o primeiro da sua hierarquia que cinge a tiara não tendo por estados pontifícios mais que a estância do Vaticano, onde a estátua de Garibaldi, do alto do Janículo, o fita vitoriosamente como eterno prisioneiro da Itália irredenta”.
Ramalho encontrou de facto duas cortes em Roma, uma no Quirinal, outra no Vaticano, “duplicando o número dos representantes diplomáticos de todos os países” e obrigando-os a reunir entre si em “territórios extra-oficiais e neutros, mais facilmente acessíveis aos viajantes, como os halls dos grandes hotéis, o salão dos restaurantes à moda e o lindo tea room do Corso”. Em face do que sabemos hoje, é duvidoso que a “defrontação dentro do mesmo povoado de duas autoridades adversas (…) produz[isse] no público romano o mais singular respeito pela opinião alheia”, como notou o escritor. O papa estava confinado por decreto ao Vaticano e a situação era insustentável.
Leão XIII fez o que pôde durante estes anos de conflito: escreveu. Algumas das mais duradouras encíclicas papais foram produzidas pelo seu punho, valendo-lhe o epíteto de “papa das doutrinas sociais e económicas”. Num discurso invulgarmente moderno, mediou os conflitos entre patrões industriais e a crescente classe operária, estipulando direitos e deveres para o capital e para o trabalho (Rerum Novarum, 1891). De alguma forma, a doutrina social da Igreja foi fundada no seu papado.
Foi também um papa que percebeu rapidamente o poder dos novos meios de comunicação de massa, baseados na reprodução da imagem. Tornou-se um dos primeiros papas fotografados e foi decerto o primeiro filmado, graças a um acordo com o cineasta William Dickson que, depois de longos meses de negociação, foi autorizado a filmar Leão XIII em passeios pelos jardins do Vaticano (1898).
Para além do conflito político com Itália, Leão XIII teve outro incêndio para apagar e, neste caso, não foi propriamente bem sucedido. Assustada com as implicações das obras de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, particularmente do ser humano, a Igreja manteve uma distância prudente em relação ao evolucionismo e ao progresso da ciência. Nenhum papa abordara oficialmente o assunto antes de Leão XIII. Na encíclica Providentissimus Deus (1893), o pontífice tocou vagamente no problema, alinhavando argumentos a favor e contra o progresso científico, usados depois pelos dois campos em disputa. Criticou por exemplo “a sede pela novidade” e a “liberdade de pensamento sem restrições” do pensamento científico, mas reconheceu também que a Bíblia não deveria ser lida no sentido literal. Não querendo alienar o mundo científico do catolicismo, mas recusando mérito às teorias da selecção natural e da evolução, Leão XIII manteve a Santa Sé no limbo. Aliás, só em 1950 uma encíclica referiu explicitamente o corpo teórico de Charles Darwin – em Humani Generis, Pio XII declarou-o não contraditório com a religião, na medida em que o evolucionismo trata da origem do corpo humano em matéria viva e não da alma, embora o mito de Adão e Eva como primeiros antepassados do homem fosse objecto de debate teológico até 2004.
Leão XIII não era um conservador. Tinha até uma curiosidade infindável sobre a ciência. Sabe-se que recebeu Júlio Verne em 1884 e interveio directamente para terminar o absurdo impedimento aos católicos de frequentarem as Universidades de Oxford e Cambridge em 1895. Mas não conseguiu destrinçar os méritos do Darwinismo dos postulados dos seus continuadores, como Herbert Spencer e o seu princípio da sobrevivência dos mais fortes, ou Francis Galton. E ficou, neste tema, do lado mais frágil da história.

RAMALHO E A LEITURA ENVIESADA DE DARWIN
Nos quinze dias que sucederam ao pedido de audiência ao cardeal Rampola, Ramalho entreteve-se a escrever um documento que resumia a sua obra literária, de “antigo panfletário”, “sem tentar atenuá-la pela contrição de qualquer pecado que nela se contenha, a não ser o da sua condenável perfeição artística”. O documento autobiográfico serviu para o Maestro de Câmara do papa conhecer a identidade do diplomata improvisado e viabilizar a audiência, percebendo simultaneamente que estava defronte de um antigo autor que assumira no passado profundas posições anticlericais. Em 1877, por exemplo, Ramalho escrevera uma brilhante e venenosa carta aberta ao papa Pio IX (inserida nas Farpas e republicada em 1882, no jornal A Imprensa, n.º 32).
Como bom jornalista, Ramalho documentou-se também sobre o seu interlocutor. Leu todas as encíclicas de Leão XIII para atenuar “o abismo de ignorância que me separava dele”. Na verdade, parecia-lhe “ridiculamente vergonhoso que eu o conhecesse quase tão pouco a ele quão pouco ele próprio me conhecia a mim. Tratei de instruir-me.”
No processo, Ramalho desvirtuou o pensamento de Darwin, imaginando que Leão XIII o condenara ou, pelo menos, percebera “o erro fundamental da doutrina de Darwin”. Em nenhum momento, Darwin antevira que o “agente principal da conservação e do desenvolvimento das espécies [é] o esforço individual na luta pela vida, enunciando o dogma cruel do struggle for life”, como Ramalho escreveu. Foi assim despropositada toda a sua arenga – aparentemente discutida pelo próprio com o papa – contra aqueles que não perceberam que “a espécie unicamente vinga e prevalece, não pelo feroz impulso da combatividade, mas pelo meigo instinto do associamento [sic] e da unificação dos indivíduos, como se dá não só com as humildes formigas e com as frágeis abelhas, mas com os mais possantes e ferozes dos carnívoros, sempre que eles se encontram em supremo conflito com a destrutiva hostilidade da concorrência”. Nunca Darwin, nem mesmo Spencer, tinham proposto tal coisa. Desconhece-se, infelizmente, se o papa Leão XIII concordou com os argumentos de Ramalho, mas o escritor e jornalista não tinha sido convocado para uma conversa teológica. O papa tinha motivos mais prosaicos para lhe falar.

A MENSAGEM
Foi num domingo, dia 10 de Novembro de 1901, pelas onze horas de manhã. Ramalho foi avisado do horário da audiência com dois dias de antecedência pelo Maestro de Câmara. Segundo o escritor, mais ninguém esteve presente na reunião. Sentado numa cadeira de espaldar, "como Voltaire na estátua do Houdon", o papa chamou-o num francês com sotaque italiano. "Pus um joelho no chão e prostrei-me, reverente, perante a majestade de um homem inteiramente vestido de branco no meio de uma câmara vermelha", contou o escritor numa carta particular. A "magreza" e a "senilidade" do interlocutor "dão-lhe um aspecto que já não parece humano".
Ramalho e o papa discutiram Lisboa e a semelhança do seu clima e orografia com os de Roma até chegarem ao tópico que Leão XIII queria focar, provavelmente esperando que Ramalho o comunicasse a Lisboa. O papa lembrou-lhe as medidas do governo português relacionadas com o controlo das congregações religiosas, queixando-se da atitude agressiva do povo (i.e., do rei e do governo) perante “a dissensão da igreja e do Estado”. Ramalho começou por lembrar que era, "perante o rei, meu amo, apenas o guardião dos seus livros [bibliotecário]. Sou totalmente alheio à política e aos actos do meu governo."
Depois, porém, assegurou ao pontífice  – por sua verve ou a pedido do conde de Arnoso, seu amigo pessoal – que não existia tal hostilidade, que ela “era mera expressão retórica, limitadamente comunicada à impulsividade de arruaceiros pelo vituperioso nervosismo de escribas enfastiados”.
Aproveitou entretanto para lançar a escada para outro tema – a decadência do clero português, a sua mediocridade intelectual e moral desde meados do século XIX. Por outras palavras, o escritor atribuiu às lacunas culturais do clero a incapacidade para manter a elite e o povo português no mesmo espírito de devoção católica que marcara os sete séculos anteriores. Enquadrou-os em retórica sobre a devoção portuguesa à Santa Sé e os contributos de tantos homens portugueses do clero para a divulgação da fé, mas o papa percebeu a posição. Discutiram a reforma setecentista da educação do marquês de Pombal, descrito inesperadamente pelo papa como “grande homem e, o que não é muito frequente, também um bom católico”.  E Leão XIII cunhou depois a mensagem que deveria ser enviada aos portugueses: “É para elevar esse nível que o Colégio Português em Roma existe. Procurarei aperfeiçoá-lo e, não obstante a minha pobreza, vou-lhe consagrar trezentos ou quatrocentos mil francos. Não conhece o Colégio?... Vá vê-lo... E informe o rei do que pretendo fazer pelo clero português.”
Como notou Luís Salgado de Matos, num artigo de 1994 (aqui), o papa partilhava a mesma perspectiva que Ramalho transmitiu. Aliás, segundo o mesmo autor, o diagnóstico era-lhe familiar porque também o núncio apostólico em Lisboa enviava sucessivos relatórios sobre o tema. O Colégio visava acolher estudantes de Lisboa, pagos pelas dioceses portuguesas, uniformizando a sua educação religiosa e aumentando os seus horizontes culturais. A decisão viria aliás a marcar a educação dos religiosos portugueses nas primeiras décadas do século XX.

JORNALISTA OU DIPLOMATA
Ramalho saiu da audiência com uma bênção papal para si e para a sua família, tendo sido esse o ângulo que escolheu mais tarde para relatar a aventura. Mas, na verdade, em 1901, Ramalho não parecia um jornalista ou um escritor. No dia seguinte, escreveu do Hotel do Capitólio ao conde de Arnoso, de forma a que este informasse Dom Carlos I da posição papal. Pensou em redigir directamente a missiva ao rei, mas pareceu-lhe "impertinente", como reconheceu na carta ao conde.
Na imprensa portuguesa, por influência seguramente das vias diplomáticas, não tardou a ser noticiada a audiência de Ramalho com Leão XIII num pequeno jornal (“O Comércio”) em Dezembro de 1901. Ramalho, porém, não escreveu sobre o tema nos cinco anos seguintes, só lhe dedicando uma crónica inocente (mais tarde agregada nos volumes das Farpas) em 1906, em “dádiva de Natal àqueles que amo”. 
"Flores de Roma", por Ramalho Ortigão, 24 de Dezembro de 1906, "Ilustração Portuguesa"
(página recuperada a partir da Hemeroteca Digital)

Pouco mais tempo esteve em Roma, a cidade que, “de século para século, através de todas as vicissitudes da política e de todas as evoluções do progresso, sobre sucessivas e sobrepostas ruínas de todas as caducidades, continua a exercer nos homens o mesmo invasivo sortilégio, a mesma carinhosa atracção que tinha na antiguidade”. Partiu para Nápoles nos dias seguintes.
A missão do diplomata, que fora jornalista e escritor, terminara.

O ARTIGO QUE ESTEVE PARA NÃO EXISTIR
Segundo a correspondência guardada no espólio do conde de Arnoso na Biblioteca Nacional [E32, v. sobretudo E32/2645], Ramalho colocara toda a informação de que se lembrara na carta improvisada ao secretário particular de Dom Carlos em 1901, pelo que, em Outubro de 1906, quando se preparava para redigir o seu texto sobre as memórias do encontro papal, viu-se na necessidade de apelar ao amigo "que tão bem arquiva muitos papéis, [se] não terá e não me quererá emprestar por uma hora uma carta que sobre o aludido assunto então lhe escrevi de Roma". O conde de Arnoso em boa hora o fez, caso contrário não teria sido passado à posteridade o minucioso relato de 1906.

Revista "Ocidente", n.º 1167, 1911
(reproduzido a partir do arquivo da Hemeroteca Digital) 

Dias depois, uma nova carta foi enviada pelo escritor ao amigo. Estava visivelmente agastado com a revista "Ilustração Portuguesa" e perguntava se valeria a pena ele, o conde de Arnoso, o conde de Sabugosa e Luiz de Magalhães colaborarem, como tinham prometido, no número especial de Natal da publicação, "uma revista veículo de tais opiniões. Por minha parte, acho que não". A que se referia o escritor?
Sabemo-lo pela carta seguinte, igualmente dirigida ao conde de Arnoso e redigida com fúria invulgar num homem que se gabava da sua contenção. É a mais violenta das dezenas de cartas de Ramalho Ortigão para o conde de Arnoso. E visava Fialho de Almeida, notável sátiro da sociedade portuguesa que, na edição de 29 de Outubro de 1906, redigira a crónica "Lisboa Monumental".
No texto, Fialho escandalizou Ramalho pelo tom anticlerical e fortemente crítico das autoridades. Transcrevo algumas passagens que decerto enervaram o escritor: "O circo equestre não tem mais viabilidade, pois temos em Santo Antão coliseu para dez ou vinte gerações de títeres e palhaços"; "[Este é] um tempo em que o homem carece de se baptizar todos os dias, o que faz da casa de banhos contemporaneamente o único baptistério a abrir nesta terra de gente por lavar"; "quanto a jazigos de família, uma vez o forno crematório decretado, traremos para casa em boiões as cinzas dos ancestros, com que bordaremos as letras do arroz doce, nos festivos jantares de aniversário"; "cada brasileiro ou rendeiro rico teve licença de erguer a casa a esmo, conforme planos de mestre António ou mestre Isidro, e isto sem a Câmara lhes pedir outras contas que não fossem alcavalas tributais – sua apoucada e cerdosa ocupação"; e, por fim, "é certo que um pouco de deboche activa a civilização dos povos bisonhos e é um factor maravilhoso de sugestões. Roleta, mulheres, circos de verão, teatrofones, música clássica, atlética, mascaradas, festas de carácter pitoresco e popular (…)"
Tudo indica que os amigos consideraram a fúria injustificada e puritana, pois Ramalho disse depois submeter-se "gostosamente às opiniões da maioria", mas ainda foi ameaçando, com implacável raiva, que "nada me seria mais fácil, quando o julgar oportuno, do que desfazer o focinho de Fialho de Almeida em cima da sua prosa".

EPÍLOGO
A audiência papal foi caindo no esquecimento nas décadas seguintes. A sua reabilitação histórica partiu de António Rodrigues Cavalheiro, historiador, deputado da União Nacional e autarca. Através da condessa de Arnoso, viúva de Bernardo de Melo, Cavalheiro teve acesso ao espólio do conde e publicou informação sobre o episódio – quer em artigos de jornal, quer em artigos mais estruturados como na "Panorama" de 1960. Fê-lo com uma marcada matriz ideológica, evocando as lições de religiosidade extrema do povo português que o caso encerrava.
Isso mesmo pode ser avaliado na sua coluna de opinião de 26 de Setembro de 1944, no “Diário da Manhã”, jornal oficial da União Nacional. A propósito dos 29 anos da morte do escritor, o historiador recordou então o ensaio “Flores de Roma”, publicado por Ramalho na “Ilustração Portuguesa”.

"Diário da Manhã", 24/09/1944, por Rodrigues Cavalheiro
Cavalheiro não deixava de lamentar as diatribes de “As Farpas” do século XIX, “páginas menos dignas da sua alta craveira mental, com que pagou tributo às superstições racionalistas do seu tempo”. Em 1901, porém, segundo Cavalheiro, Ramalho já estava noutro patamar da evolução espiritual, na “ascensão para a grande luz do Catolicismo”.
Para o deputado da União Nacional, o episódio encerrava uma lição relevante: a resposta de Ramalho ao exagero das tomadas de posição de alguns jornalistas e políticos sobre a Santa Sé, meras expressões de arruaça intelectual que não poderiam esconder a relação privilegiada do país com a Igreja. E terminava: “Que profundo tema de meditação para quem não abdique totalmente da faculdade de pensar e de concluir!”

sexta-feira, março 22, 2013

quinta-feira, março 21, 2013

Comerciantes de São Miguel, 1945

"O Seculo ilustrado", 3/11/1945

Nas colecções de "O Seculo Ilustrado", encontrei este anúncio publicitário das caixas registadoras Hugin. Data de 3 de Novembro de 1945 e dará seguramente pretexto para recuperar nomes e casas comerciais que fizeram história na ilha de São Miguel.
Na legenda, infelizmente ilegível na fotocópia (a tinta preta perdeu-se no fundo vermelho), refere-se: "Caixas registadoras Hugin. Os comerciantes dos Açores dão a preferência a esta grande marca sueca."
E, nas imagens, ilustram-se as seguintes personagens:
Na primeira fila, da esquerda para a direita: Mercearia Caetano, Ponta Delgada; Casa Zenite, Rua Marquês da Praia e Monforte.
Na segunda fila, da esquerda para a direita: Electro (João Soares jr.), Mercearia de Carlos & Cia, Largo 2 de Março; A. M. Ramos, Ponta Delgada; Casa Pepe, Ponta Delgada
Na terceira fila, da esquerda para a direita: Loja Taveira, Ponta Delgada; Café para Todos, Ponta Delgada; Loja Vieira, Vila da Lagoa; Farmácia Vieira Botelho, Sucessor, Ponta Delgada
Na última fila, da esquerda para a direita: Casa Tinoco, Ponta Delgada; Casa Castelo, José Álvaro Guerreiro, Sucursal de Ponta Delgada.

terça-feira, março 05, 2013

A fotografia de Luiz Carvalho selou o destino da Dona Branca



"Tal & Qual", 5 de Março de 1983
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Faz hoje 30 anos. No dia 5 de Março de 1983, na sua edição n.º 140, o semanário Tal & Qual apresentou aos portugueses Maria Branca dos Santos. Para muitos lisboetas, frequentadores habituais das escadarias de madeira da sua residência, na Rua Dr. Almeida Amaral, ao Campo Mártires da Pátria, não foi propriamente uma apresentação. Conheciam aquela cara e aquela história – a imagem acabada da “tia boa e tolerante que, quando éramos miúdos, nos dava cubos de marmelada guardados num velho e pesado aparador, situado numa soturna sala de jantar”, como mais tarde a descreveria o jornalista Hernâni Santos. Nesse dia, sem que ninguém o soubesse, começou o fim da Dona Branca.
Por admissão do jornalista José Rocha Vieira, à época director do jornal e autor do primeiro texto sobre Maria Branca dos Santos, o “furo” jornalístico começou com quatro clientes da banqueira e com as suas histórias de encantamento com a “mulher que é um autêntico banco”. No Portugal de 1983, de depressão económica e inflação galopante, o enredo de Dona Branca era irresistível: uma simpática anciã da Mouraria, de 72 anos, que ora vestia casaco de peles na rua, ora o trocava por um avental em casa; que tratava todos por “ó filho” e “ó filha”; que não resistia a contar a sua anedota picante; e sobretudo que, apesar da iliteracia, pagava juros de 10% ao mês aos depositantes que lhe confiavam as economias.
Os quatro testemunhos garantiam ao jornal que “o ‘cacau’ está tão seguro nas mãos desta mulher de cabelos brancos como nos cofres da mais sólida instituição de crédito”, mas faltava credibilizar a narrativa com uma fotografia sugestiva da banqueira. O objectivo foi concretizado pelo fotógrafo Luiz Carvalho, à data o único repórter fotográfico do Tal & Qual e na verdade o jornalista que desbloqueou o contacto com a senhora (alguns pormenores adicionais aqui). 

Fotografias de Luiz Carvalho
(reproduzidas a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Com um misto de oportunidade e persuasão, Carvalho fotografou o quotidiano da entourage da banqueira e captou a senhora num momento que viria a ser publicado ad nauseam nos meses seguintes: a imagem mostrava-a confiante, sorridente, saindo de um prédio, de casaco de peles e colar de pérolas, ajudada por uma colaboradora. Aparentemente captada à distância, mas autorizada pela própria, a fotografia revelava ainda a pequena “peculiaridade física indispensável a uma tia: um dos dentes da frente, espetado e comprido, encavalita-se-lhe no lábio inferior, ficando à mostra quando fecha a boca”. Em manchete – e as manchetes provocatórias e divertidas do Tal & Qual inauguraram um estilo de que O Independente viria a ser herdeiro anos depois –, o jornal escrevia: “Dona Branca – Uma banqueira às suas ordens.”
Numa curta entrevista telefónica, a “benemérita” garantia nada ter “a dizer, meu filho. Posso pedir dinheiro emprestado e posso dar por ele os juros que quiser. O meu dinheiro é meu: posso rasgá-lo, dá-lo ou até ir à janela e deitá-lo para a rua.”


RESPONSABILIDADE
Estavam feitas as apresentações, mas nem os jornalistas adivinhariam o turbilhão que se viveria na sociedade portuguesa nos 19 meses seguintes, até à detenção da Dona Branca, em Outubro de 1984. Em jeito de anedota, vale a pena referir que, nessa reportagem inaugural, o jornal cometeu involuntariamente um lapso, noticiando que o escritório onde a banqueira também fazia empréstimos se situava na Rua Abade Faria, n.º 30. Foi um erro incómodo, como se veria uma semana mais tarde. O escritório ficava no n.º 20 e, durante toda a semana, os moradores do 30 não tiveram sossego, tantos eram os toques na campainha dos novos depositantes.
Num texto estupendo (aqui), Luiz Carvalho conta que demorou dois meses a persuadir a benemérita a deixar-se fotografar sem se esconder. Prometeu-lhe que nada de mal sucederia. Era uma promessa impossível de cumprir, pois os mais de cem mil exemplares do jornal circularam pelo país e criaram um mito imparável. Como dizem os dinamarqueses, as promessas e os ovos são facilmente quebráveis.
A operação da “banqueira do povo” baseava-se num ritmo estável de depósitos e numa rede de confiança que impedia estranhos (no sentido de não conhecidos dos membros da pirâmide) de entrarem no negócio. Enquanto se manteve nesses parâmetros, a operação progrediu, apesar dos indícios mais tarde apurados de que os colaboradores da Dona Branca desviavam regularmente fundos, comprometendo o esquema piramidal de crédito. A celebridade proporcionada pelo Tal & Qual e pela fotografia de Luiz Carvalho selou depois o destino da benemérita.

ESTADO DE GRAÇA
Jornal popular, de poucas páginas, poucas palavras, poucas fotografias e poucas peneiras, o Tal & Qual encontrou na Dona Branca o seu filão. Nas semanas seguintes, a benemérita foi regularmente tema de notícias. Ora porque o jornal procurava perceber o seu complexo esquema de investimento imobiliário capaz de suportar o pagamento de juros aos depositantes (12/03/83), ora porque os nobres El Pais, Guardian ou Frankfurter Rundschau lhe dedicavam reportagens (19/03/83), ora ainda porque a Dona Branca não resistira a telefonar para o programa “A Festa Continua”, de Júlio Isidro, na RTP, licitando por 350 contos um quadro no âmbito de uma emissão de apoio à Casa da Imprensa (11/05/83). O público no Cinema Europa fez “aahhh” quando soube da identidade da benemérita, e a “gentil banqueira do povo” marcou mais uns pontos no imaginário popular, que a romantizou como uma encarnação moderna do Padre Cruz.

"Tal & Qual", 3 de Fevereiro de 1984
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)

Perto do final do ano de 1983, o verniz começou a estalar, sempre com o Tal & Qual no comando da reportagem. Por um lado, a revelação de que recebia uma pensão de pobreza de 3.900 escudos foi escandalosa, face ao conto de fadas que se conhecia; por outro, Ernâni Lopes, ministro das Finanças, recomendou na RTP cautela aos depositantes e, em privado, pediu à Inspecção de Crédito do Banco de Portugal para investigar a operação. No primeiro inquérito, aliás, a Dona Branca chorou copiosamente e explicou que só ajudava os necessitados. Os inspectores entreolharam-se quando tomaram conhecimento da sua lista de clientes. Entre os depositantes, constavam deputados, políticos, figuras da televisão e do cinema português. E vários inspectores da Policia Judiciária.

A QUEDA DO ABISMO
No imaginário popular, brincava-se que a Dona Branca daria um ministro das Finanças mais capaz do que “o sovina Ernâni Lopes”, mas, a partir de Fevereiro de 1984, o ritmo dos depósitos começou a decrescer. Emergiram na imprensa suspeitas de insolvência. Apesar disso, pelo menos para o exterior, o negócio prosperava. Ao escritório da Rua Abade Faria, somava-se agora outro na Avenida Rio de Janeiro. Dezenas de angariadores patrulhavam a cidade. Acumulavam-se sacos de plástico com dinheiro na sede da organização. Passavam-se recibos de depósito sem confirmação. Cega pela atenção pública, Dona Branca parecia ter perdido o controlo da operação. Ao fotógrafo de uma agência francesa que a captou no seu Mercedes com a sobrinha, a benemérita pespegou dois beijos na face.
Em Junho, Maria Branca dos Santos anunciou um período de meditação, coincidente com a fase em que já não conseguia cobrir os juros exorbitantes. Surgiram os primeiros relatos de burla na sua própria organização. De contas paralelas em Espanha e na Suíça. Descreviam-se recibos de depósito forjados, mas pagos como válidos (saber-se-ia mais tarde, durante o julgamento, que o principal livro de contas da organização era a memória da Dona Branca). Branca vendia património imobiliário e jóias para cumprir os compromissos. 
Homem de muitas guerras, com 92 anos de experiência, o banqueiro Cupertino de Miranda resumia o que parecia inevitável: “Na actual conjuntura, não conheço nenhum negócio legítimo que dê sequer 30 por cento. Ora 120 por cento ao ano é inconcebível.”
Fosse por convicção ingénua ou por desejo de prolongar a história jornalística da sua publicação, Hernâni Santos continuou a alimentar o mito. A 5 de Junho de 1984, relatou a história da benemérita que apoiara a Associação de Deficientes das Forças Armadas e que se preparava para oferecer equipamento ao Instituto de Oncologia. Pior do que isso: o jornal publicitou casos de sucesso de depositantes a quem as contas continuavam a bater certo e para quem o dinheiro estava seguro.
Um dia, o dinheiro deixou de estar seguro. A conta 631 5356 do Banco Português do Atlântico, na Praça de Londres, deixou de ter cobertura. Os depósitos cessaram. Os clientes da Dona Branca queriam levantar as economias e a conta estava “careca”. Colaboradores próximos publicavam desmentidos na imprensa, recusando qualquer ligação à operação da benemérita. Com ironia, mas alguma falta de vergonha, o Tal & Qual rotulou o caso com uma manchete inesquecível: “A Branca... rota” (07/09/1984).

"Tal & Qual", autor desconhecido
(fotocópia obtida a partir de arquivo da Biblioteca Nacional)
Foi o pandemónio em Lisboa. Meio milhar de pessoas acorreu aos escritórios. Foi necessário destacar um contingente da PSP para a Avenida Rio de Janeiro porque, nas palavras de Rui Machete, ministro da Justiça, “não podemos permitir que a Dona Branca seja sovada”. Encenaram-se tentativas de recuperação em Setembro. Numa das ocasiões, um falso depositante aproximou-se do escritório e, à frente da fila de credores, garantiu que ali ia deixar 1.500 contos por ter confiança na banqueira. Era tarde. Nem os vinte investigadores da PJ que tinham caído na esparrela conseguiram recuperar os seus depósitos. A fonte secara.
No dia 4 de Outubro de 1984, a Dona Branca foi presa. Nunca se soube o volume total de depósitos perdidos. Morreu em Abril de 1992, numa casa de saúde, praticamente cega.
O seu destino ficara selado no dia em que a objectiva de Luiz Carvalho a imortalizou.